terça-feira, 22 de dezembro de 2015

As mil cores de João

Aquele seria um grande dia. Era aniversário do João e a mamãe tinha prometido uma super festa, com muitas bolas coloridas, doces, brincadeiras, música, alegria e fantasia. Foi por isso que João acordou tão cedo. Antes mesmo de o sol aparecer, ele pulou da cama, enfiou os chinelos, abriu a porta de mansinho e, bem devagarinho, foi para a cozinha olhar o movimento.

Imagine você que elas já estavam todas lá, num alvoroço danado. A mamãe, a tia Sofia e a Maria, enrolando os brigadeiros, batendo a massa do bolo, conversando, rindo e fofocando. Mas quando João abriu a porta e entrou de repente, todo sorridente, o alvoroço foi-se embora e fez-se um silêncio danado. Cara de espanto para tudo quanto é lado.

– Nossa João! O que foi que aconteceu?
– Caiu num balde de tinta?
– Porquê? Perguntou João assustado.
– Você está azul, azulzinho. Mais parece um passarinho.

A mamãe, toda nervosa, recomeçou a falação:
– Já para o banho! Vou esfregar até a sua cor voltar, porque azul é que você não pode ficar. Hoje é dia do seu aniversário! E lá foi o menino para a tina com sabão. Esfrega daqui, esfrega dali. Passa a bucha, a escovinha, o esfregão, pano de chão. Até aquele multiuso, olha só, passaram no pobre João. E nada! O menino continuava azulzinho, igualzinho a um passarinho.
– E agora? O que é que eu vou dizer para os convidados?

Mamãe estava mesmo preocupada, com aquela cara de mãe que vê o boletim cheio de notas vermelhas. Cara feia, de dor de barriga ou de noite mal dormida.
– O melhor é ir ao médico. Disse tia Sofia.
– Quem sabe ao dentista? Ao analista? Ao massagista? Talvez falar com a vizinha, que tem receita para tudo. Resfriado, lumbago, hepatite, amidalite...
Nossa que confusão! Todas falavam ao mesmo tempo dando sua opinião... Doença, veneno, feitiço, maldição.

Quando as coisas se acalmaram, novas caras de espanto! João, de azul passou para branco e, assustado, ficou sentado, amuado, fazendo cara de quem está enjoado, com o estômago muito embrulhado.
– Aí meu Deus! Isto é coisa do diabo. Gritou a Maria.
– É melhor levar o menino para ver o padre Bento. Sugeriu tia Sofia.
– Que padre que nada. Vou chamar o médico, isto sim. E vai ser agora mesmo! O João sabia que sempre que podia a mamãe resolvia.

O doutor Bastião parecia engraçado. Abriu aquela malinha que os médicos usam quando vão ver seus pacientes em casa e começou a investigação. Olhou o nariz, a boca, a unha. O dedão, a orelha e a sobrancelha. Cutucou, apertou e apalpou, mas nada encontrou. E de tanta irritação, chateação, apalpação e apertão, o João acabou roxo, quase do mesmo tom daquele batom que a tia Sofia usou no dia das bruxas. Se saísse assim de casa, espantaria todo mundo. Que desgosto profundo!
– É melhor fazer repouso. Nada de brincadeiras! Disse o doutor em tom ameaçador.

E lá foi o João para a cama, triste, desanimado, totalmente acinzentado. Só pensando na prometida super festa, com muitas bolas coloridas, doces, brincadeiras, música, alegria e fantasia. Deitado e arrasado, se tornou preto carvão. Era a mistura da raiva com medo e frustração. Será que ninguém percebia que o que acontecia era que o João mostrava por fora o que por dentro sentia. Era a pele que dizia o que ele não conseguia. Sentimentos revirados e muito bem abafados.

João deitou chorando e, aos poucos, um sono profundo foi chegando. Porque tristeza também cansa, deixa a gente mole, sem vontade de fazer nada, nem de comer rabanada. No sonho daquele dia, João fugia, pulava a janela, caminhava para ao circo e se tornava atração: AS MIL CORES DE JOÃO! Dizia um belo cartaz, bem em frente ao grande portão. As malabaristas, os palhaços, a platéia e outros artistas. Todos riam do João e o menino acordou suado, com uma baita dor no coração.

Sem pensar mais de uma vez, saiu do quarto escondidinho, bem de mansinho, para pegar a bicicleta e correr em linha reta. Na sua imaginação, o circo podia ser mesmo a melhor opção. Ao longo do caminho, em vez do alvoroço e da gritaria de todos os dias, João foi se dando conta de que a casa estava era vazia. Havia um silêncio danado, meio mal assombrado. Afinal, onde se meteram a mamãe, a tia Sofia e a Maria?

Quando passou pelo espelho, olhou e viu espantado que agora ficava amarelado. Foi então que a preocupação tomou conta do João. Assim, sozinho e horrorizado, ele ouviu um zum-zum-zum esquisito, parecendo a mistura de risada com apito.
- Que barulho será este? indagou curioso.

E lá foi o João espiar, procurar. Porque além de colorido, ele  era curioso e estava muito assustado com aquela falta de gente e o silêncio todo. Queria um abraço bem quente, para perder o novo tom e voltar a ser o mesmo de sempre. Foi então que ele viu, lá no fundo da garagem, a mamãe, a tia Sofia e a Maria cercadas pela garotada da rua e pelos amigos do colégio. Viu também o cachorro Tião, a vizinha Margarida e as bolas coloridas. O zum-zum-zum era de festa e João ficou vermelho. Vermelhinho de emoção.

Assim o dia do aniversário se tornou um dia muito especial. Especial como o João, que não foi parar no circo e não virou atração, mas acabou conhecido em toda a região como o menino colorido feito bola de sabão. Só que agora já se sabe: se algo está errado e ele fica amuado, basta um abraço apertado para um bom resultado.


sábado, 12 de dezembro de 2015

Um doce encontro de gerações

Más notícias são poderosas. Além de tristeza, podem descortinar diversos sentimentos e lembranças adormecidas pelo tempo. Hoje, recebi uma notícia dessas, que me balançou e trouxe à tona recordações de um tempo que já vai longe. A dor é inevitável. As lembranças, por outro lado, são capazes de preencher meu coração com uma enorme sensação de acolhimento e amor. 
Minha avó postiça, a Boió, como costumamos chamá-la, acabou de ser levada novamente para o hospital. Está doente há muito tempo e a cada remoção percebo que o fim de sua existência, como a conhecemos, está mais próximo. Não escolhemos nossa família, mas aprendemos a amá-la mesmo assim. Quando novos personagens se agregam a ela, esse amor pode e deve expandir-se e abraçar a todos que nos escolheram como irmãos, filhos ou netos. No meu caso, aprendi essa lição cedo e com naturalidade, na medida em que a construção da minha identidade se deu em diferentes vias de mão dupla, inclusive não consanguíneas.
Acho que todos sabemos, eu por experiência própria, que estamos em constante aprendizado sobre o processo natural de envelhecimento, já que, na maioria das vezes, convivemos com indivíduos de até duas gerações mais antigas. Isso nos faz, ao longo do tempo, compreender as possíveis deficiências e dificuldades dessa etapa da vida, mas também estimula a resolução de possíveis problemas com uma certa antecedência e a adoção de uma postura autônoma e independente. Minha convivência com meus avós naturais e com a Boió me proporcionou tudo isso, mas, no caso específico das minhas relações com ela, minha indiozinha devotada e amorosa, adquiri outras competências como a serenidade e a dedicação às tarefas da casa, o cuidado com nossas crianças, a paciência com os adolescentes e o amor na preparação dos alimentos que nos sustentam e nos dão força para continuar. 
Muito provavelmente não terei a oportunidade de rever aquele sorriso sincero ou de me sentir protegida no seu abraço caloroso. Entretanto, não posso deixar de agradecer a Deus por ter me dados mais esse presente. Uma doce avó postiça com a qual aprendi diversas lições de vida. Simples assim.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Aurora Cabeluda

Aurora já nasceu cabeluda. Tão cabeluda que, durante o tempo que ficou na maternidade, virou atração principal. Todos queriam ver os cabelos cacheados de Aurora. Era tanta gente, tanta gente, que a enfermeira passava horas tentando organizar uma fila. Uma fila enorme. Descia pelas escadas e só parava no pipoqueiro da esquina.

Na rua, os curiosos perguntavam se era fila de emprego. Ou de liquidação. De ingresso para o desfile das escolas de samba, de matrícula em escola pública. Ou de visto para entrar nos Estados Unidos. Mas a resposta era sempre a mesma:
– Nada disso! É fila para ver a cabeleira da Aurora.

Ninguém sabia se ela era gorda ou magra, se tinha olhos pretos, castanhos ou azuis, se estava dormindo ou acordada. A única coisa que todo mundo via era a cabeleira. Uma cabeleira que tapava todo o resto. Um montão de cachinhos tão enroladinhos que mais pareciam as molas da caixa de molas da oficina do João.

Certo dia, a mãe da Aurora resolveu acabar com aquela confusão. Chamou o vovô, a vovó, a Maria e a vizinha.
– Vamos cortar a cabeleira da menina.
Foi um espanto só. Era uma decisão muito séria. Já pensou! E se ela for feia? Ou vesga? Ou amarela? Mal-humorada? Emburrada? Chorona? Brigona?

– Não quero saber! Vamos cortar e já. Tragam uma tesoura, a maior de todas.
A mãe da Aurora tinha resolvido. Cortaria a cabeleira de qualquer maneira. Seria um grande dia, todos poderiam ver de que jeito era a menina. E a Aurora iria, finalmente, conhecer aquela gente que ela podia ouvir, mas não podia enxergar. Tudo por conta da cabeleira.

Maria trouxe a tesoura grande, a que mora na gaveta da cozinha. Trouxe a vassoura também. E sem dó nem piedade, começou o corta-corta. A mãe cortava de um lado enquanto a Maria varria de outro. Foram mais de duas horas cortando e varrendo. Varrendo e cortando. Cortando, cortando, cortando... Varrendo, varrendo, varrendo...

De repente, a vizinha deu um grito:
– Encontrei! Achei uma orelha.
Foi uma festa. Todos pulavam e batiam palmas. Acharam uma orelha da Aurora. Nem torta, nem feia, nem grande, nem verde ou amarela. Uma orelhinha linda, redondinha.
– Se achamos a orelha, agora falta pouco. Mais alguns minutos e poderemos ver os olhos, a boca, o nariz...
A vizinha era a mais animada.

Continuaram cortando. Mais para direita, mais para esquerda, um pouquinho aqui, outro ali. Um cachinho de cima, outro cachinho de baixo. E, devagarzinho, foram aparecendo outros pedacinhos da menina.
– Oh! Nossa!
– Que beleza!
– Ufa!
Aurora era uma beleza mesmo. Nem gorda, nem magra, nem preta nem branca, nem feia nem bonita. Mas apesar disso, parecia uma princesa daquelas que a gente só vê em contos de fadas. A Maria largou a vassoura e começou a chorar. De emoção! Aurora era simpática, risonha e engraçada.

Quando as coisas se acalmaram, a mãe, que vivia decidindo, decidiu de novo:
– Agora é hora de dormir. Amanhã poderemos mostrar para todos da cidade como é maravilhosa a nossa Aurora. Na padaria do Jacó, na farmácia do Pedrão, na escolinha da Marieta. E na oficina do João...

Naquela noite todos sonharam com a menina. Até o vovô, que só sonhava com as guloseimas da Maria. Brigadeiros voadores, quindins amarelinhos, tortas de morango, de abacaxi, de coco e a Aurora! Simpática e risonha Aurora! Quase tão perfeita como os docinhos caramelados da festa do seu aniversário de 70 anos.

No dia seguinte, a família toda acordou bem cedinho. Antes dos passarinhos. Antes das árvores, das flores, da gente, da cidade inteira. Se encontraram na porta do quarto da menina. Queriam entrar de mansinho e ficar olhando para a Aurora, porque olhar para a Aurora trazia paz e a calmaria. Nem gorda, nem magra, nem preta nem branca, nem feia nem bonita. Mas apesar disso, uma princesa daquelas que a gente só vê em contos de fadas.

Quando chegaram perto...

Que susto! Lá estava a cabeleira. A cabeleira que tapava todo o resto. O montão de cachinhos tão enroladinhos que pareciam as molas da caixa de molas da oficina do João.
– Como pode? Cortamos ontem!
Maria largou a vassoura e começou a chorar. De tristeza.

A surpresa foi tão grande, tão grande, que não dava para falar. Para andar, para mexer. Não dava nem para decidir o que fazer. Cortar de novo, nem pensar. Dava muito trabalho e, pelo visto, não iria adiantar. A cabeleira não parava de crescer, mas alguma coisa a mãe tinha de fazer para Aurora aparecer.

Até que a vizinha falou.
– Vamos amarrar!
– Amarrar a coitadinha? Falou a Maria chocada.
– A menina não sua tonta, a cabeleira.
E saiu correndo para comprar um rolo de fita lá no armarinho da dona Ana. Amarra, amarra, amarra... Mais para direita, mais para esquerda, um pouquinho aqui, outro ali. Um cachinho de cima, outro cachinho de baixo.

Amarraram tanto e deram tantos laços que, aos pouquinhos, Aurora foi aparecendo e iluminando toda a casa. Não é que funcionou! Ela era mesmo demais. Por de traz da cabeleira, que teimava em crescer sem parar, havia uma linda menina.  Nem gorda, nem magra, nem preta nem branca, nem feia nem bonita. Apenas simpática, risonha e engraçada.