terça-feira, 5 de junho de 2018

Sempre pode piorar

O primeiro acampamento a gente nunca esquece. Depois vem o segundo e o terceiro até que um dia alguém te chama para passar um feriado na fazenda da nova namorada em Miguel Pereira e como a turma toda topa ir, você também topa. É claro que você não acredita que algo possa dar errado, mas depois dessa história você vai mudar de ideia.

Partimos em três carros porque era muita gente e as coisas ficaram estranhas logo no início do percurso, quando um deles se perdeu dos outros dois. É incrível como uma coisa tão grande quanto um carro pode sumir assim, sem mais nem menos. Mas a verdade é que o carro sumiu e a galera que estava na frente resolveu voltar achando que o sumido poderia ter parado por algum motivo técnico, como um furo no pneu. Parece uma boa ideia não é mesmo? Só que não foi.

A gente do carro de trás, que também deixou de avistar os carros à frente, achou que eles estavam mais adiante e seguiu caminho em busca dos companheiros. Assim começou a irritante brincadeira de gato e rato, bem na via Dutra, que durou mais de duas horas. Você deve estar se perguntando porque será que os idiotas levaram tanto tempo para se encontrar e eu vou explicar: ainda não existiam os celulares, ou seja, ninguém falava com alguém o tempo todo e, além disso, três carros em movimento numa rodovia, sempre em direções contrárias, têm pouca chance de se esbarrar, né?

Apesar da pouca chance, depois de muito correr para lá e para cá, os três carros se encontraram novamente em um comércio que havia no início da serra. A essa altura, a noite já se aproximava e para provar o que digo sobre um dia ruim, daqueles em que não se deve sair de casa, o tempo começou a virar, trazendo uma neblina espessa que tomou conta de toda a paisagem. Não era mais possível enxergar um palmo adiante do nariz e foi preciso abrir os vidros, botar as cabeças para fora e reduzir a velocidade do comboio para 20 quilômetros por hora.

Nesse passo de tartaruga, os carros seguiram em frente e enveredaram por uma rota de terra, cheia de buracos e lama. Adivinha? Era a rota errada e era tão ruim, mas tão ruim, que alguém falou: 
– Só falta a gente atolar para a viagem se transformar num verdadeiro tormento.
E não é que aconteceu? Um atolamento daqueles em que o carro afunda devagar, até a lama chegar no meio das portas, com todo mundo olhando, de boca aberta, sem poder fazer absolutamente nada. Foi a gota d'água. Uma gota grande que aflorou o  pior de cada um de nós. Afinal, os copos já estavam tão cheios de fome, cansaço e entraves, que transbordaram provocando brigas e muita confusão. Que mistura explosiva essa!

No meio do nada, um vai a pé busca socorro e não acha; outro tenta sair do carro atolado sem afundar na lama e não consegue; alguém tenta empurrar de lá, mas não dá certo; outro alguém tenta puxar daqui, mas também não dá. Até que apareceu 'O' caminhão. Depois de horas de desespero, finalmente o socorro tão esperado e carro atolado foi resgatado, rebocado por cordas e muita boa vontade. A sensação foi a mesma de quando vemos a mocinha ser salva nos filmes de cowboy. Só faltou o toque da cavalaria, que teria dado ao resgate a sua verdadeira dimensão.

Agora você deve estar pensando 'até aí, tudo bem' e eu concordaria se as idas e vindas pela Dutra não tivessem consumido toda a gasolina de um dos veículos. E como o dia era mesmo um daqueles em que não se deve levantar da cama, não foi possível encontrar nenhum posto aberto durante à noite, o que obrigou os carros a estacionarem para esperar o sol raiar, o que levou uma eternidade.

Não poderia piorar, não é? Mas piorou. Depois de abastecer e correr mais alguns quilômetros, chegamos na tal 'fazenda'. O lugar deve ter sido lindo há alguns anos atrás, mas estava mal conservado, caindo aos pedaços e com marcas de hospedes permanentes – enormes morcegos negros – em todas as paredes. Além disso, os pais da tal namorada nova não gostaram nada nada daquela invasão.

E então? Não parece maldição? Mais de doze, eu disse DOZE horas para ir do Rio de Janeiro à Miguel Pereira e ainda dormir com medo dos morcegos dividindo dois quartos de hóspedes com uma dúzia de pessoas.Vai chamar isso de quê? Olho grande, má sorte, destino, castigo. Pode até ser, mas eu vou continuar achando que foi maldição.

A essa altura você deve estar pensando 'coitados, deve ter sido um fim de semana horrível'. Só que está enganado de novo. A maldição só durou 24 horas e, apesar dos contra tempos, o fim de semana foi incrível, cheio de risada gostosa, de quem se lembra até das coisas ruins com prazer. Aquela risada que chega a dar água nos olhos e dor de barriga. E é por isso que eu sempre digo que não se render nunca e fazer graça da própria desgraça é a melhor opção. Passeios em pangarés, banhos de piscina, trilhas no meio do mato e tudo o mais que adoramos fazer quando ainda não conhecemos hotéis de cinco estrelas.
P.S.: Hoje, quando eu penso nos donos da casa tendo de aguentar e alimentar um bando de jovens desconhecidos por dois dias inteiros, me dá até um arrepio. Nada melhor do que mudar de ponto de vista, não é mesmo?

Entre tapas e beijos

Histórias de viagens são sempre cheias de surpresas. Isto porque quando a gente é jovem, nunca planeja nada. Alguém dá a ideia, todo mundo se anima e pronto. A viagem já está marcada. Aí, é só colocar um biquíni na mochila, arranjar um meio de transporte e se mandar. Ninguém está muito preocupado com o que vai comer e nem onde vai dormir mas, apesar de parecer loucura, tudo dá certo. É claro que não é uma viagem de primeira classe, mas é o suficiente. Você pode se instalar em um camping, comendo sanduíche de atum e dormindo em uma barraca abarrotada de gente sem nem perceber como tudo aquilo é horrível.

O primeiro acampamento da gente da casa das janelas azuis foi em 1979. Não me lembro de quem foi a ideia, mas a turma se mandou para Friburgo, na região serrana do estado do Rio. Nessa época, alguns daquele grupo já haviam completado 18 anos, o que significa que esses sortudos podiam levar o resto de carro. Foi só arrumar algumas barracas e sacos de dormir, fazer compras no mercadinho, colocar toda a tranqueira nos porta-malas e pronto. Em cerca de duas horas já estavam no tal camping.
Com certeza você deve estar se perguntando o que estar em um camping de Friburgo tem de bom e essa é uma pergunta difícil de responder. Dorme-se mal, come-se mal, o frio atrapalha, a falta de água quente para o banho atrapalha, a falta de um banheiro decente atrapalha. Tudo é bem complicado, mas a galera não estava nem aí. A única coisa que importava era conviver com os amigos o tempo todo e você pode notar que não tem ninguém com cara de triste na foto aí de cima. Não sei explicar bem tantos sorrisos, só sei que quando a gente é jovem nossos olhos vêem as coisas de maneira diferente. Um passeio na mata, um jogo de vôlei, um mergulho no rio e uma macarronada bastam para nos fazer esquecer da vida. Se o dia estiver ensolarado, melhor ainda.

Hoje, quando olho para as fotografias de tantos anos atrás, fico imaginando como seria a nossa vida se essa energia e esse desprendimento tivessem perdurado. Se ao ficarmos mais velhos, ao invés de mais exigentes no que diz respeito ao nosso conforto físico, continuássemos como quando jovens, buscando o conforto da alma nas pequenas coisas. Nada muito especial, só um pouco do aconchego dos abraços e dos beijos de quem amamos e uma risada bem gostosa. Mas não acontece assim, não é mesmo?

Quanto mais velhos, mais exigimos da vida. Queremos camas macias e, de preferência, extra-grandes. Queremos refeições harmonizadas com os melhores vinhos e transporte eficiente e veloz. Queremos roupas bacanas, o último modelo de celular e televisões enormes, com imagens incrivelmente reais, que nos prendam no sofá para vermos a vida passar dentro de nossas casas decoradas por outras pessoas. Uma pena, mas ainda dá tempo de voltarmos a dar importância aos momentos simples que nos fazem bem. Não custa nada, tá tudo dentro da sua própria cabeça. É só tentar.

Ser livre é uma escolha

Crescer não é fácil para ninguém e também não foi fácil para as crianças da casa das janelas azuis. Você vai achar que o que vou dizer clichê, ou melhor, bastante óbvio, mas crescer significa assumir responsabilidades, ter de cuidar de si próprio, incluindo os cuidados com a saúde, a alimentação, a cabeça e todas as outras partes do corpo também. Se cai, se machucar, e já for adulto, vai ter de ir ao hospital e pagar os médicos por conta própria. 

É por isso que quase todas as histórias que falam de adolescentes, falam também de revolta, mal-criação, enfrentamentos e coisas assim. É tão difícil para eles, que alguns chegam até a fugir de casa, para depois voltar correndo e já sabendo que viver sem estar rodeado pela família e pelos amigos é realmente muito chato. É dessa parte da vida das crianças da casa das janelas azuis que eu vou falar daqui para frente. Não por que não haja mais histórias da infância. muitas ainda existem e, algum dia, voltaremos lá.

Foi bem no meio da década de 1970 que as crianças começaram a deixar de ser crianças. Uma época em que o mundo vivenciou a derrocada norte-americana no Vietnã, o escândalo político de Watergate, o surgimento do movimento punk e a crise do petróleo. Aqui no Brasil, foram os anos mais repressivos da ditadura militar, porque já se começava a perceber o início de um lento processo de abertura política. Por conta da censura e do regime autoritário, muitas das transformações culturais e comportamentais daqueles anos não foram completamente vivenciadas por aqui. 

Apesar disso, tanto em terras tupiniquins como lá fora, as roupas, as artes e o comportamento jovem mudaram radicalmente. Os anos anteriores haviam influenciado muito o início da década, tanto no visual, como no pensamento hippie e nas artes psicodélicas. Ponto de partida para, alguns anos depois, parte da juventude aderir ao modo de ser soturno e agressivo do punk e a outra parte descambar para o estilo colorido e descompromissado da discoteca e da música pop. Ser livre passou a ser uma questão de escolha e você já deve ter imaginado que os marmanjos da casa das janelas azuis descambaram para as discotecas, de patins e de meias coloridas, não é?
Foram anos felizes, de bonança e prosperidade, quando o trabalho duro ainda era a melhor maneira de subir na carreira e quando era possível caminhar pelas ruas sem ter de prestar atenção ao que acontecia ao redor. Isso porque os adolescentes da casa das janelas azuis foram blindados, assim com quase todas as crianças e os adolescentes conhecidos. Questões políticas, revoltas, sequestros, prisões, tortura e outros assuntos do gênero só faziam parte da conversa alheia. O que de certa maneira era muito bom.
Ir ao colégio, estudar o mínimo para passar sem ter de fazer recuperação, paquerar muito, ir às festas de garagem, dançar juntinho com o coração batendo forte, ficar horas namorando pelo telefone e viajar para a casa dos muitos familiares espalhados pelo Brasil afora eram os únicos afazeres que interessavam.

É nessa época que a gente começa a viajar. Primeiro com a família, a nossa e a dos amigos, depois em bando para acampamentos. Um pouco mais tarde e você já está se mandando para outros estados e, por fim, você faz sua primeira viagem internacional sozinho, nem que seja para a Argentina. Para a gente da casa das janelas azuis, Recife e São João eram as melhores paragens. Recife por suas praias, pelo sol, pela vida saudável do litoral, pelos frutos do mar, pelo carnaval de Olinda, pelos bailes de clube. São tantas as delícias e histórias daquela terra que vai dar pano para manga.

São João então, nem se fala. Não sei se você sabe, mas cidades pequenas, principalmente as do interior de Minas Gerais, são verdadeiros oásis para quem está acostumado às limitações que a segurança na cidade grande impõe. Quando a gente chega naqueles morros e encontra primos e amigos queridos, a cidade pequena fica melhor ainda. E como lá tudo é perto e tudo é longe ao mesmo tempo, o tremendo vai-e-vem agita a vida de todo mundo que vem de fora. E aí, meu amigo, é só escapar da matilha e se aventurar. Estar em grupo passa a ser seu melhor álibi e a melhor desculpa pra qualquer imprevisto, ever

Mas isso a gente vai ver em outras histórias. 

Na chácara

O que é mesmo uma chácara? Difícil de responder, ainda mais se você ainda é pequeno e não tem um vocabulário razoável. De acordo com os milhares de dicionários da língua portuguesa que existem por aí, chácara e sítio são a mesma coisa e ambos podem significar "local; lugar ocupado por um objeto; chão descoberto; terreno próprio para qualquer construção; localidade; povoação; aldeia; lugar assinalado por um acontecimento notável; pequena lavoura; quinta; morada rural; campo; roça ou pedaço de terra cedido a lavradores". Que loucura a língua portuguesa não é? Uma variedade enorme de palavras e termos que querem dizer a mesma coisa ou coisas diferentes, tudo junto, misturado e à nossa escolha.

Pois então, neste sítio ou chácara da história de hoje havia uma grande fábrica de condutores, fios e cabos elétricos e umas três casas lindas que pertenciam à família dos seus donos: primos, filhos de primos e netos de primos da Vó e do vô do bigode. A fábrica e as casas não ficavam muito longe da rua Timbuíba, mas, para a gente pequena que acha qualquer viagem de carro que dure mais de 10 minutos é uma tortura, pareciam bem distante. Apesar disso, quando as crianças da casa das janelas azuis passavam uns dias na casa do Vó e do vô do bigode, sempre convenciam os adultos a levá-los até lá, onde os ares de casa de campo faziam tanto o percurso de carro como o fato de que ainda estavam naquela cidade enorme serem imediatamente esquecidos.

Era uma delícia ter todo aquele espaço para brincar e correr. Jardim, árvores e uma casa de bonecas de alvenaria, com porta, janela, telhado vermelho e, vejam só, cozinha, pia, mesinha e cadeirinhas. Tudo do tamanho certo para gente pequena. As meninas adoravam! Já os meninos, não saiam dos carros com motor de verdade que circulavam pelas ruas do lugar como se estivessem num autódromo. Além dos brinquedos e brincadeiras, muitos banhos de piscina refrescavam a garotada e o melhor de tudo: lá todos podiam comer bife com batata frita em qualquer refeição. Vamos combinar? Comer bife com batata frita faz de qualquer um o mais feliz dos seres.
Apesar do espaço verde, da batata frita e dos brinquedos incríveis terem deixado ótimas lembranças, foi uma pegadinha da natureza que marcou a memória das crianças da casa das janelas azuis quando se fala da chácara: o poder do DNA. Como você deve saber, podemos reconhecer nos filhos o jeito, as vozes e a aparência dos pais, não é mesmo? Sempre é possível dizer:
– Nossa, como você parece a sua mãe.
Ou então:
– Puxa, você tem os olhos do seu pai.

Essas semelhanças tem relação com o DNA, uma questão de genética que sempre cai nas provas do Enem e que eu, por já ter passado um pouquinho da idade, não sei explicar muito bem. Só sei dizer que nas pessoas da Chácara o DNA deve ser muito poderoso. A parecença entre os pais e os filhos era e ainda é impressionante. Os pequenos eram iguais aos pais, só que mais novos e menores, é claro. Pode parecer normal porque, geralmente, isso acontece. Mas para os forasteiros da casa de janelas azuis, essa semelhança era especial, já que naquela família ninguém se parecia. Nem mãe com filha, nem pai com filho, ou vice e versa.

Na verdade, aquela família parecia ter sido formada ao acaso e isso, às vezes, se tornava um problema. Para muitos, olhos azuis por exemplo, eram motivo de estranhamento. Nem pai nem mãe tinham os olhos dessa cor. Alguns diziam que vinham dos avós, o que sempre parecia esquisito porque era como se os olhos pulassem uma geração inteirinha. Além disso, o outro pequeno tinha olhos castanhos, e bem escuros. Os tons de pele também variavam. Se todos colocassem as mãos juntinhas, formava-se uma escala de quatro tons diferentes. E os cabelos então? Nem se fala. Pretos, castanhos e loiros. Uma variedade difícil de entender e que chegou a causar algum sofrimento e confusão.
Ser diferente às vezes pode ser ruim, mas também pode ser bom. A gente só precisa descobrir que precisamos ser iguais aos nossos pais apenas se formos iguais na bondade, na honestidade, na coragem e no caráter. De resto, nada importa. Como dizia um dos pequenos: eu sou uma gente e você é outra gente. Somos todos diferentes e devemos nos aceitar e respeitar assim mesmo. Afinal, são as diferenças que nos fazem tão interessantes.

Que diferença?

Foi em um dia de festa na casa da rua Timbuíba que um segredo foi revelado. Você deve saber que existem vários tipos de segredo. Alguns são chamados assim, mas todo mundo sabe, o que significa que não é tão segredo como se pensa. Outros são segredos para alguns, mas não são para outros. Esses são os meios segredos que se parecem mais com os mistérios ou com as mágicas de festa de aniversário. Tem gente que sabe como elas funcionam e tem gente que não sabe. Mas existem segredos realmente secretos: os verdadeiros segredos.

Os verdadeiros segredos são aqueles que trancamos dentro do peito e depois jogamos a chave fora. Ficam lá para sempre e, aos poucos, adormecem até serem esquecidos. Mas nunca morrem. Podem ser fruto de um sentimento ruim, uma culpa por algum mal que a gente causou, um acontecimento que que nos marcou profundamente ou um pensamento que não revelamos para ninguém. Só é segredo mesmo quando é assim: ninguém mais sabe. E como tudo que escondemos é, geralmente, ruim, não guarde segredos de espécie alguma. Conte-os para alguém e você vai se sentir melhor. Sempre.

O segredo da casa da Rua Timbuíba era só meio segredo porque os adultos escondiam das crianças. Havia acontecido há muito tempo e causado muito sofrimento. Talvez tenha sido por isso que virou segredo, para não causar mais sofrimento. Naquela época, era normal esconder as coisas das crianças. Crianças não se preocupavam com nada porque não sabiam de nada. Eram tratadas apenas como crianças e podiam brincar, sonhar e se divertir, sem se preocupar com as conversas dos adultos. Assim, nada de inflação, crise econômica ou serial killers que amedrontam a cidade e isso é muito bom. É uma pena que, à medida em que crescemos, fatalmente acabamos conversando só sobre essas coisas de adulto, o que é muito chato.

BBom, foi num dia de festa como eu ia dizendo. A casa estava cheia e estavam todos se arrumando até que um dos pequenos precisou de ajuda. Provavelmente para amarrar os sapatos ou fechar os botões nas costas do vestido, o que aliás é uma ideia esquisita porque se você estiver sozinho, pode acabar prisioneiro de uma roupa. É vergonhoso ser refém de um vestido e ainda pode causar uma torção de braço. O pequeno procurava alguém para ajudá-lo a sair de uma situação deprimente como essa e, como porta aberta era uma espécie de sinal verde, a criatura entrou no quarto do vô do bigode em busca da Vó.

 

Foi aí que o segredo começou a ser desvendado: o vô do bigode não era igual a todo mundo. Não estou dizendo que ele era um ET ou coisa assim, era apenas diferente. Era uma diferença razoavelmente grande e sua descoberta foi inesperada, o que provocou um surto paralisante no pequeno desavisado, até que o vô do bigode pediu que se aproximasse. Obedecer aos mais velhos era a regra e quando um deles te chamava, você tinha de ir. Às vezes era difícil dar o primeiro passo, mas depois do primeiro vem o segundo e o terceiro e pronto. Você chega lá, mesmo que esteja com medo ou melhor, com os olhos arregalados e o coração disparado.

_ Está vendo a diferença? perguntou o vô do bigode.

_ Que diferença? perguntou o pequeno assustado. 

_ Você tem dois pés e eu só tenho um, disse o vô.

_ Porque cortaram o seu pé? Onde ele está? Quis saber o pequeno quase chorando.

_ Foi um acidente. Ninguém cortou o meu pé. Fui eu que me distrai e cai no trilho do trem.

Nessas horas difíceis acho que é melhor mesmo ser criança e não saber muita coisa da vida. As coisas da vida podem ser muito tristes, tão tristes que nos envelhecem alguns anos em poucos segundos. Em um momento desses quem tem seis anos se sente como se tivesse dez. Como assim, perder um pé no trilho do trem? Isso só acontece nos desenhos animados e mesmo assim, logo depois o pé volta ao normal. Aquilo parecia uma pegadinha, só que não tinha ninguém rindo e isso era mau sinal.

A história era simples: o vô do bigode era engenheiro e construía estradas de ferro para os trens viajarem pelo país, num tempo em que o governo brasileiro ainda tinha bom senso e achava que os trens eram uma boa ideia. Para a construção de uma estrada de ferro perfeita é preciso verificar se toda ela está funcionando direitinho. Chama-se vistoria e funciona assim: os engenheiros sobem em um carrinho que corre sobre os trilhos que já estão prontos. O carrinho é aberto e, portanto, se alguém cair, já era. Se o sujeito tiver sorte, cai para os lados. Se não tiver tanta sorte, cai na frente do carrinho que passa por cima sem dó.

Depois da explicação, a criança viu um outro pé, separado e prontinho para ser usado, com sapato e tudo. Era um pouco mais brilhante que um pé de verdade, mas era um pé, o que queria dizer que mesmo que o acidente tivesse acontecido, alguém já havia pensado em como consertar a coisa toda. Alguém parecido com quem conserta brinquedos ou a máquina de lavar. Vê o que está errado, pensa bem, arranja uma peça nova, bota no lugar e pronto. Graças aos céus existem pessoas assim. Estão sempre querendo melhorar a vida dos outros. No caso do vô do bigode, aquele pé avulso fez toda a diferença para que ele voltasse a ser um vô de bigode quase igual ao que existia antes. Se bem que naquela época ele não era avô de ninguém, ainda.

 

Sabe o que essa história quer dizer: que tudo muda, a vida muda. Só permanece igual o que aprendemos com a garra de alguns, com o amor e a dedicação de outros e com a compaixão com que somos tratados por todos.

Dias de Festa

O povo que morava na rua Timbuíba era muito festeiro. Acho que esse negócio de gostar de festa veio lá das montanhas de Minas Gerais, junto com o vô do bigode. Só pode ser, porque ele era caladão, mas adorava ver a casa cheia de gente, especialmente se fosse para comemorar alguma data especial. Casamentos, aniversários, bodas e Natais. Nessas ocasiões, a casa do vô do bigode recebia as filhas, o filho, genros e nora, netos, namorados dos netos e depois novos maridos, esposas e bisnetos. Foi assim que o vô do bigode formou uma grande família da qual ele fazia questão de estar por perto.

O vô do bigode sempre teve bigode, é claro. Não me lembro dele sem aquele chumaço bem aparado em forma retangular, bem grisalho. Era a sua marca registrada. Acho que ele quis formar uma família grande porque estava acostumado. Cresceu no meio da fuzarca de doze irmãos. Sabe-se lá o que é isto? Uma única mulher para treze filhos? Coitada, deve ter sido uma loucura. Sem falar que o pai do vô do bigode morreu cedo e mãe do vô do bigode teve de criar todos os filhos sozinha. Sobre isso, a dona da casa das janelas azuis sempre contava que os irmãos mais velhos cuidavam dos mais novos. E que a vara de marmelo cuidava de todo o resto. Naqueles tempos, vara de marmelo podia. Servia para dar umas lambadas nos arruaceiros sem machucar as mãos. Mas os tempos mudaram, não é mesmo?


Bem, voltando para as festas da rua Timbuíba, a família que vinha de fora chegava por lá sempre muito animada, um ou dois dias antes para ter tempo de matar as saudades. Isso transformava as festas em eventos de três dias, porque a casa da rua Timbuíba hospedava muita gente e casa cheia sempre parece estar em festa. Festas são boas, mas as de três dias são incríveis e para as crianças então, nem se fala. Ficar na mesma casa e brincar sem ter hora para nada, com os primos, é um prêmio. Principalmente se os primos forem quase da mesma idade como acontecia com os garotos que tomavam todos os aposentos com brincadeiras que envolviam correria e confusão. Eles só não estragavam as festas porque a maioria dos adultos já estava acostumada e não lhes dava muita atenção. Só lembravam da existência dos pirralhos quando acontecia algum acidente grave, como quando alguém se espetava na grade do portão, rolava a escada ou caia do muro.

É sério! Uma vez um deles ficou espetado na grade com pontas de lança do portão. Espetado como uma salsicha que é pega pelo garfo bem no meio. Braços para um lado, pernas para o outro. Um desespero só. O pior da história, ou o melhor, é que a lança era grossa e a ponta bem tosca. Passou pelas costelas, mas não conseguiu penetrar no pulmão. Chegou bem pertinho e ainda levou junto a camisa pólo branca para dentro do buraco. Deve ter sido uma dor danada, mas ele era valente. Eu teria desmaiado e , graças aos céus, não me lembro de ter visto o resgate. Lembro apenas que ele foi direto para o hospital e voltou consertado. Lembro também que a casa ficou muda: as crianças se recolheram com aquela cara de quem comeu e não gostou.

Todo mundo sabe que ficar quietinho numa hora dessas é o melhor a se fazer, porque em toda família tem sempre pelo menos um adulto que é um pouco mais nervoso e, portanto, um pouco mais temido, especialmente depois de um estresse. Na rua Timbuíba, esse adulto era a mãe da dona da casa das janelas azuis ou simplesmente a Vó. A Vó era muito bonita e quase o mesmo tanto de beleza, ela tinha de braveza. Queria controlar a bagunça e a gritaria. Ela dizia que muita confusão a deixava atordoada. Que eu saiba, confusão serve para isso mesmo, deixar a gente confusa. A Vó, além de ser uma dona de casa à moda antiga, ainda tinha superpoderes: sempre sabia quando alguma coisa estava errada. Sua personalidade forte contrastava com a do vô do bigode, que gostava mesmo era de ficar sentado na cadeira da varanda com a perna pra cima, lendo o jornal. 

A batuta da Vó fazia com que todos os outros mortais executassem suas tarefas normais e também as tarefas necessárias para que as festas fossem perfeitas. Limpeza, arrumação, flores, aperitivos, primeiro prato, segundo prato, terceiro prato e várias sobremesas. Uma fartura só e o bolo de nozes mais gostoso do planeta, feito pela Boió é claro. Tudo organizado e bonito. Para completar e combinar, a gente da casa parava tudo que estava fazendo para ficar bonita também. Dava um trabalho danado, mas não tinha escapatória. Por isso, na hora do vamos ver não havia como evitar as brigas pelo território do banheiro. O mais estranho, é que na casa da rua Timbuíba até as toalhas de banho, com tamanhos, cores e desenhos diferentes, eram perfeitas. Toalhas reunidas durante uma vida inteira, velhas, já sem parelhas, mas perfeitas para reduzir a possibilidade de trocas e discussões. Assim, depois do banho, do perfume, da roupa nova e dos cabelos escovados até as fotos ficavam perfeita, tipo foto de família real.