Mas quando os dias eram de sol, as coisas ficavam bem diferentes e as crianças da casa das janelas azuis corriam para a areia logo depois do café da manhã, carregando as pranchas, os baldes, a bola, o frescobol, as esteiras e o guarda sol colorido, que só fazia figuração porque ficava ali, bem enfiado na areia, mas sozinho. A moda era colecionar conchinhas, treinar pegar jacaré e ficar bem moreninho. você sabe que ficar moreno para uns é mais fácil do que para outros, o que rendia muitas experiências químicas, além de um bom dinheiro para os ambulantes que vendiam toda a sorte de bronzeadores. Não era difícil ver vários deles passeando pela praia e oferecendo aos desavisados óleos de beterraba, café, cenoura, urucum e até um que vinha de outro país e tingia a pele de vermelho, deixando todo mundo com jeito de índio.
A regra-quase-lei dizia que a pausa para o almoço devia ser de três horas. Além do tempo necessário para encher o bucho, a pausa incluía o tempo da digestão porque, de acordo com as más línguas, tomar banho de mar depois de comer muito podia dar congestão e deixar a gente tortinho. Por falar nisso, como se comia na casa das janelas azuis! Os jovens da espécie humana, especialmente os machos, quando entram na adolescência, viram verdadeiras dragas, palavra que acabou por se tornar o apelido do irmão mais novo da dona da casa, um tio meio primo por causa da pouca idade. Naqueles tempos, apelidos ainda não eram considerados bulling e todos tinham um. Draga, palito, biscoito, cuca. Ter um apelido personalizava, transformando um dos muitos amigos chamados Marcelo no único pulguinha do mundo.
Com as crianças crescendo, a liberdade e o raio de ação das brincadeiras na praia aumentou bastante, o que fez a tarefa de manter as cabeças protegidas impossível e a de reunir a turma toda na hora das refeições uma aflição. Isso irritava muito a dona de casa que, além de ter um lugar para tudo, tinha hora para tudo também. A irritação dos adultos da casa das janelas azuis exigia uma atitude bem rápida, porque se não virava brabeza, o que fez a dona da casa correr para a garagem pedir ao engenheiro magrinho uma solução para os dois problema
_ Os chapéus não param nas cabeças e o clássico berro de "tá na mesa" é ouvido por todos os vizinhos e pelos turistas, mas não é ouvido por quem interessa. Estou ficando rouca de novo.
Como era de seu costume, o engenheiro magrinho pensou um pouquinho. Bem pouquinho mesmo, só até ter duas ideias brilhantes.
_ Os chapéus você vai ter de amarrar com fitas e vamos substituir o berro por alguma coisa mais eficaz.
E lá foi ele para as ruas de paralelepípedos tentar encontrar a tal alguma coisa para substituir a gritaria. Tinha certeza de que lá no centro da vila ele encontraria seja lá o que fosse, porque no centro de todas as vilas existem todas as coisas, para comprar e para vender. Acabou encontrando o que procurava na loja de ferragens e trouxe logo pra casa, todo orgulhoso, o grande sino de latão.
O tal do sino deu certo. As badaladas traziam a criançada para casa na hora exata. Os que nela moravam e os agregados também, porque ouvir sino tocando dá uma fome danada em qualquer um. Depois da comilança era hora de contar os minutos no relógio em forma de oito, que morava na parede da sala de jantar. Os minutos contados eram aqueles que faltavam para voltar correndo para o sol e para as brincadeiras no mar, só que sem ficar torto. Dizem que hoje em dia o sol está muito mais queimante do que há quarenta anos atrás, mas eu tenho cá as minhas dúvidas. As horas passadas nas areias da Praia da Vila rendiam, além de felicidade, narizes em chamas. Narizes, ombros, barrigas e aquele lugarzinho mais branquinho que fica no alto das pernas.
A ardência era tão grande, tão grande, que não dava nem para tocar no lugar afogueado. As blusas das meninas tinham de ser trocadas por lenços finos e leves e o final da tarde se transformava no momento da tortura. Cremes e pomadas brancas, grossas e gosmentas tentavam aliviar o sofrimento dos queimados, que depois de algum tempo viravam os descascados, porque pele de gente troca que nem pele de cobra. Não sei se você sabe, mas pele velha e queimada coça e dá uma vontade danada de arrancar. Só que quando arrancada, se a pele nova não estiver prontinha, faz uma bela ferida. E ferida de pele arrancada dói mais que a própria queimadura e ainda deixa marcas. Marcas feias de ser ver, mas boas de lembrar. Marcas de um tempo feliz.