sábado, 30 de janeiro de 2016

Narizes em chamas

O sol era muito importante para quem gostava da Praia da Vila. Sem ele, os dias passavam devagarinho e a diversão tinha de mudar de lugar. As pranchas de surf e as de pegar jacaré ficavam encostadas na parede dos fundos da casa das janelas azuis e eram substituídas por jogos de tabuleiro, revistas em quadrinhos e outras brincadeiras de criança em dia de chuva como jogar as Cinco Marias, fazer arte com lixo que não é lixo, pintar quadros em telas de tecido, montar quebra-cabeças de mil e quinhentas peças, treinar a memória com jogos difíceis e imensos feitos pelo engenheiro magrinho com revistas coloridas, fazer pipas com papel de seda, jogar futebol de botão e transformar a mesa da sala em mesa de pingue-pongue. Outra opção era não fazer absolutamente nada e tirar um cochilo na rede azul, tamanho extra grande para aconchegar mais de um.


Mas quando os dias eram de sol, as coisas ficavam bem diferentes e as crianças da casa das janelas azuis corriam para a areia logo depois do café da manhã, carregando as pranchas, os baldes, a bola, o frescobol, as esteiras e o guarda sol colorido, que só fazia figuração porque ficava ali, bem enfiado na areia, mas sozinho. A moda era colecionar conchinhas, treinar pegar jacaré e ficar bem moreninho. você sabe que ficar moreno para uns é mais fácil do que para outros, o que rendia muitas experiências químicas, além de um bom dinheiro para os ambulantes que vendiam toda a sorte de bronzeadores. Não era difícil ver vários deles passeando pela praia e oferecendo aos desavisados óleos de beterraba, café, cenoura, urucum e até um que vinha de outro país e tingia a pele de vermelho, deixando todo mundo com jeito de índio.

A dona da casa e as meninas eram adeptas fervorosas da coloração a qualquer preço. Só que a dona da casa tinha na pele uma dose de melanina que facilitava o bronzeamento natural. As outras, mais branquinhas, sofriam o dia inteiro se revirando nas esteiras, na tentativa de fazer as marquinhas dos biquínis ficarem bem aparentes. Coisa de menina, porque os meninos não estavam nem aí. Para os meninos, os dias de sol eram dias de brincadeira e por isso todos ficavam na praia por horas e horas sem chapéu, sem almoço e sem beber água, apesar do uso do chapéu e da hora do almoço serem sagrados para a dona da casa. Tão sagrados que ela baixou uma regra-quase-lei.

A regra-quase-lei dizia que a pausa para o almoço devia ser de três horas. Além do tempo necessário para encher o bucho, a pausa incluía o tempo da digestão porque, de acordo com as más línguas, tomar banho de mar depois de comer muito podia dar congestão e deixar a gente tortinho. Por falar nisso, como se comia na casa das janelas azuis! Os jovens da espécie humana, especialmente os machos, quando entram na adolescência, viram verdadeiras dragas, palavra que acabou por se tornar o apelido do irmão mais novo da dona da casa, um tio meio primo por causa da pouca idade. Naqueles tempos, apelidos ainda não eram considerados bulling e todos tinham um. Draga, palito, biscoito, cuca. Ter um apelido personalizava, transformando um dos muitos amigos chamados Marcelo no único pulguinha do mundo.

Com as crianças crescendo, a liberdade e o raio de ação das brincadeiras na praia aumentou bastante, o que fez a tarefa de manter as cabeças protegidas impossível e a de reunir a turma toda na hora das refeições uma aflição. Isso irritava muito a dona de casa que, além de ter um lugar para tudo, tinha hora para tudo também. A irritação dos adultos da casa das janelas azuis exigia uma atitude bem rápida, porque se não virava brabeza, o que fez a dona da casa correr para a garagem pedir ao engenheiro magrinho uma solução para os dois problema
_ Os chapéus não param nas cabeças e o clássico berro de "tá na mesa" é ouvido por todos os vizinhos e pelos turistas, mas não é ouvido por quem interessa. Estou ficando rouca de novo.

Como era de seu costume, o engenheiro magrinho pensou um pouquinho. Bem pouquinho mesmo, só até ter duas ideias brilhantes.
_ Os chapéus você vai ter de amarrar com fitas e vamos substituir o berro por alguma coisa mais eficaz.
E lá foi ele para as ruas de paralelepípedos tentar encontrar a tal alguma coisa para substituir a gritaria. Tinha certeza de que lá no centro da vila ele encontraria seja lá o que fosse, porque no centro de todas as vilas existem todas as coisas, para comprar e para vender. Acabou encontrando o que procurava na loja de ferragens e trouxe logo pra casa, todo orgulhoso, o grande sino de latão.


O tal do sino deu certo. As badaladas traziam a criançada para casa na hora exata. Os que nela moravam e os agregados também, porque ouvir sino tocando dá uma fome danada em qualquer um. Depois da comilança era hora de contar os minutos no relógio em forma de oito, que morava na parede da sala de jantar. Os minutos contados eram aqueles que faltavam para voltar correndo para o sol e para as brincadeiras no mar, só que sem ficar torto. Dizem que hoje em dia o sol está muito mais queimante do que há quarenta anos atrás, mas eu tenho cá as minhas dúvidas. As horas passadas nas areias da Praia da Vila rendiam, além de felicidade, narizes em chamas. Narizes, ombros, barrigas e aquele lugarzinho mais branquinho que fica no alto das pernas.

A ardência era tão grande, tão grande, que não dava nem para tocar no lugar afogueado. As blusas das meninas tinham de ser trocadas por lenços finos e leves e o final da tarde se transformava no momento da tortura. Cremes e pomadas brancas, grossas e gosmentas tentavam aliviar o sofrimento dos queimados, que depois de algum tempo viravam os descascados, porque pele de gente troca que nem pele de cobra. Não sei se você sabe, mas pele velha e queimada coça e dá uma vontade danada de arrancar. Só que quando arrancada, se a pele nova não estiver prontinha, faz uma bela ferida. E ferida de pele arrancada dói mais que a própria queimadura e ainda deixa marcas. Marcas feias de ser ver, mas boas de lembrar. Marcas de um tempo feliz.

domingo, 24 de janeiro de 2016

O milagre do peixe

Em uma das férias grandes a casa de janelas azuis recebeu a visita dos tios e primos de São José dos Campos. Era a família do irmão do meio do engenheiro magrinho: um gigante bravo, mas ao mesmo tempo carinhoso, sua esposa e os três filhos, quase da mesma idade das crianças de lá. Eles haviam viajado muitos quilômetros para matar as saudades e animar o verão, porque casa cheia de gente também fica cheia de alegria. Assim, para aproveitar bem a alegria que veio de longe, em uma manhã em que o sol também está feliz, o engenheiro magrinho anunciou a pescaria na lagoa. E é claro que ninguém quis ficar para trás. 

Naquele tempo, a lagoa de Jacarepiá e seu entorno ainda não tinham sido transformados em reserva ecológica. Para chegar lá, todos entravam no carro do engenheiro magrinho e faziam uma pequena e confusa viagem. Isso porque o carro era minúsculo e tinha de levar muita gente. Quando o passeio era de pesca então, as pessoas ainda precisavam dividir o espaço com as varinhas, os puças, os baldes, as cadeiras de armar, as iscas e, é claro, o lanche, porque lanchar fazia parte da diversão.

Depois de lotado de gente e de coisas, o carrinho seguia cortando o extenso brejo que, em época chuvosa, inundava a estradinha de terra, formando grandes poças de lama. O veículo ficava imundo, mas o engenheiro magrinho nem ligava. Sempre explicando as coisas, não parava de lembrar que na lagoa era possível pescar acará, traíra, piaba e muitos outros peixes, cujos nomes teimam em fugir da minha memória. Além de tagarelar sobre os tantos peixes, ele também alertava:
_ Podemos pegar todos eles, mas depois devemos soltar. Principalmente os pequeninos.

Quando o carrinho chegou ao seu destino final, a ponte pequena logo se transformou em um anexo da casa das janelas azuis: as cadeiras foram armadas, o lanche foi descarregado, os cestos foram para um lado e os baldes para o outro, as varas colocadas no chão, por ordem de tamanho, e as iscas separadas, sendo que cada uma para o seu cada qual. Quer dizer, isca de peixe é de peixe e isca de siri é de siri. Em seguida, nas pontinhas das varas pequenas de bambu foram amarradas as linhas de nylon, do tamanho certo para alcançar a superfície da água. E nas pontas das linhas foram adicionados pequenos anzóis, que além de peixes também pegavam dedinhos, exigindo muito cuidado do engenheiro para que a festa não acabasse antes de começar. Logo depois dos anzóis, pesinhos em forma de balão deixavam as linhas bem esticadas.

Com as iscas firmes era só a criançada jogar a linha lá do alto da ponte pequena para os peixinhos desavisados serem figados. E naquele dia, os peixes estavam bem distraídos porque as crianças pescaram para valer. Com a varinhas e com os puças também. O que quer dizer que, além dos peixes, os siris também estavam distraídos. Não sei se você sabe, mas puça é uma espécie de armadilha. Uma rede presa em torno de um círculo de arame. No centro da rede fica um peso e no centro do círculo fica a isca. Todo o aparato é jogado na lagoa e desce até o fundo. Quando puxado de volta, traz dentro um ou mais siris, dependendo da fome dos bichinhos.


Com os peixes e siris distraídos, o engenheiro magrinho também pescou muito, só que com vara de gente grande, que pesca os peixes maiores. Aqueles que a gente come assado no almoço e os únicos que se pode levar pra casa no final da pescaria. Foi um desses peixes grandes que acabou por se tornar o personagem principal da estória de hoje. É quando um peixe se torna personagem principal, que a estória entra para a lista das que valem a pena contar. 

Só que antes, tem algo que é preciso registrar. Algumas crianças, quando ficam cansadas ou com fome, ficam chatas. É verdade verdadeira essa que estou falando. Manha, choro, implicância e outras mazelas são coisas vêm junto com o cansaço. Com as crianças da casa das janelas azuis, seus primos, os primos dos primos e os amigos não era diferente. Todos ficavam muito chatos no final de um dia de farra e brincadeiras. Parecia uma doença genética e, se não fosse genética, com certeza era pegajosa. Um começava com a chatice e os outros logo seguiam na mesma estrada. O bando, antes alegre e divertido, tornava-se um bando de selvagens brigões.

Pois bem, naquele fim de tarde, a doença se alastrou dentro do carrinho do engenheiro magrinho, bem na hora da volta pra casa. Se alastrou tão rápido e de tal forma que o sempre paciente engenheiro esqueceu a paciência de lado e começou a pedir para todos ficarem quietos. Mas quem disse que criança cansada obedece? Obedece nada. Criança cansada não ouve, só fala, chora e arruma confusão. Uma confusão tão confusa que o carro se transformou num verdadeiro manicômio, ou melhor, um lugar para gente que sonha pensando que fala e fala pensando que sonha. 

Foi bem nessa hora mais maluca que o peixe voou da cesta e acertou os que estavam no banco de trás. Passou zumbindo no ouvido de um por um e acabou fazendo o milagre do peixe. O milagre do silêncio total. Paz e tranquilidade imediatas. A não ser por um ou outro soluço baixinho que não se ouvia direito, porque peixada na orelha, além de calar a boca, deixa todo mundo surdo de vez.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A casa de Itaúna

Era nas ruas de paralelepípedos que ficava o centro da vila. Nelas a gente podia encontrar os prédios mais importantes que existem em todas as cidades, nas grandes e nas pequenas: a prefeitura, de onde o prefeito dava as ordens para tudo funcionar direitinho; a escola, sempre cheia de crianças entrando e saindo; e o posto de saúde, que era bem pequeno, mas que tinha os melhores médicos para cuidar dos machucados graves, aqueles que não podiam ser cuidados na enfermaria da casa das janelas azuis. Por ali estavam também a farmácia e a padaria, que fazia as deliciosas bisnagas do café da manhã e ainda funcionava como a única lanchonete da vila; a casa que vendia ferramentas, tintas e todo tipo de material de construção, lugar preferido do engenheiro magrinho; a loja de equipamentos para os pescadores, também muito frequentada pela família; e a delegacia, que as crianças da casa das janelas azuis só conheceram depois, quando já estavam maiores.

Perto da praça principal, cheia de bancos e árvores, havia uma rua onde uma senhorinha fazia os melhores sorvetes, com frutas de verdade. Os sorvetes eram feitos em forminhas e quando estavam meio moles - meio duros, a senhorinha enfiava os palitos e os transformava em picolés. Tinha até picolé de milho cozido, uma novidade para quem morava na cidade grande. A rua do sorvete desembocava nos pés da escadaria da igrejinha, construída lá no alto do morro para a gente que gosta de Nossa Senhora de Nazareth. A igreja podia ser vista de qualquer lugar e quem tinha ânimo de subir as escadarias se deliciava com a paisagem das duas praias mais lindas do mundo e da única lagoa de água doce da região.

A primeira praia mais bonita do mundo era a Praia da Vila, é claro. A outra podia ser avistada por quem se dirigisse para o outro lado da igreja e chamava-se Itaúna. Era considerada uma das melhores para aqueles que gostavam de surfar. Foi em Itaúna que o irmão mais novo do engenheiro magrinho comprou uma casa só para ele e para a sua família: a esposa, que trabalhava como bibliotecária na cidade grande, e os três filhos, um pouco mais novos do que as crianças da casa das janelas azuis. Para os pequenos, a casa de Itaúna era bem diferente das outras casas conhecidas porque não tinha rua na frente. Quem quisesse chegar lá, fosse de carro, de bicicleta ou a pé, tinha de seguir pela rua de trás. Na frente, só tinha um muro bem baixinho separando a casa da vegetação nativa e da areia. Por isso, quando as visitas chegavam e olhavam através das grandes janelas de correr, parecia que tudo era uma coisa só, a casa, o jardim, as areias e o mar. Ah, aquela casa era uma pintura.


Quando gente grande arruma de juntar muita gente pequena é um salve-se quem puder. Eu sempre digo: um é pouco, dois é bom, três é demais e cinco, então, nem se fala. Mas os dois irmãos eram muito amigos e as duas cunhadas também. Gostavam de ver a família reunida, com as crianças correndo e brincando por toda a parte. Por isso sempre arrumavam motivo para uma visita, ou lá ou cá. Nas férias pequenas do meio do ano, quando o tempo fica assim mais ou menos, o vento sopra forte e os mares se revoltam, o motivo para as reuniões eram as festas juninas. Nessas ocasiões, as crianças da casa das janelas azuis podiam brincar com os primos, os primos dos primos e os primos que não eram primos de verdade, mas que exerciam esse papel com perfeição. 

São João, São Pedro e Santo Antônio gostam de ver as crianças com fantasias de caipira, não sei porque cargas d'água. Em festa de santo do meio do ano, as fantasias são obrigatórias, assim como acender fogueiras, comer salsichão e iluminar o céu, já cheio de estrelas, com muitas outras estrelas só que coloridas. Ouvir o engenheiro magrinho e seu irmão mais novo cantarem cantigas antigas fazia parte da brincadeira. E soltar balões pequenininhos também. Os balões que partiam da casa de Itaúna eram tão miúdos que voavam por pouco tempo e caiam antes de sair do espaço aéreo do jardim, com as buchas apagadas. Isso quando não pegavam fogo no ar, ainda na subida, e se desfaziam na frente de um monte de olhinhos tristes e de bocas semi-abertas.


Além das festas juninas, a casa de Itaúna, assim como a casa das janelas azuis, assistiu a muitas aventuras da molecada. Os resultados nem sempre eram felizes e você pode não acreditar, mas os adultos daqueles tempos achavam tudo normal. Os tombos do alto dos galhos das árvores, por exemplo, causaram alguns ossos quebrados e cortes na cabeça ou nas pernas, mas a solução vinha bem rápido. Enfiavam o acidentado no carro e levavam direto para o posto de saúde. Os machucados mais graves tinham como ponto final o Hospital de Araruama, maior e mais bem equipado. Dos que me lembro, talvez não o pior, mas com certeza um dos mais engraçados, foi aquele em que o tombado atingiu em cheio o cacto grande que morava em frente à porta de trás. Imagina só. Tombo de árvore já é ruim, se for em cima de cacto então, é um horror. Os espinhos doem demais e são difíceis de tirar, principalmente os pequenininhos.

Hoje eu sei que cola branca, aquela da escola, é a maneira mais fácil de remover os espinhos de cacto da pele. É espalhar uma boa camada por cima, esperar alguns minutos até secar e depois puxar a cola de uma vez só, sem dó. Mas naquele dia, o instrumento usado pelas cunhadas foi a pinça de tirar sobrancelha e eu lhe digo, tirar espinhos de cacto com uma pinça dessas leva tempo. Quem usa a pinça tem de trabalhar em um local bem iluminado e ter visão de Raio X, para pegar um por um. Como era especialidade das cunhadas, que tinham sapiência e paciência, os espinhos foram sendo cuidadosamente retirados. Uma cunhada ficou com o lado esquerdo, a outra com o lado direito e o trabalho foi bem feito. Mas a cada movimento, de uma ou de outra, um berro bem alto se seguia. E a cada berro, uma boa gargalhada se ouvia. Criança é assim mesmo, ri da desgraça alheia.

Assim, cerca de 100 espinhos renderam 100 berros do coitado e uma tarde inteira de risadas. Por isso, usar a técnica da pinça é a maneira menos tediosa e também a mais eficaz de todas. Além de remover os espinhos, deixa lembranças amargas para o caído e lembranças felizes para todo o resto. Então, aí vai um conselho: se você gosta de subir em árvores, não se esqueça de escolher a sua com cuidado e prestar atenção para que os cactos e outros arbustos espinhentos estejam longe do seu raio de ação.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Ladeira abaixo

Na vila onde ficava a casa das janelas azuis o meio de transporte mais usado por gente grande e pequena era a bicicleta. Era possível ver pessoas andando de bicicleta pelas ruas de terra batida e pelas de paralelepípedos também. Todo mundo na vila tinha a sua e, dependendo do tamanho do dono e do que ele fazia, os modelos eram bem diferentes. Novinhas ou enferrujadas, com ou sem banco de carona, com ou sem buzina, com ou sem espelho retrovisor. As maiores, às vezes, tinham uma bandeja sobre a roda da frente que servia para transportar caixotes de frutas, cestas de pão e, especialmente, cestas com peixes e outros animais marinhos trazidos do mar pelas redes dos pescadores que moravam nas redondezas. As bicicletas menores eram mais usadas pelas crianças e, para diferenciar umas das outras, eram pintadas e enfeitadas com franjas nos bancos e nos guidons.

As bicicletas que moravam na garagem da casa das janelas azuis eram muito amadas e especiais. Tinham sido trazidas da cidade grande no porta malas do carro do engenheiro magrinho. Levavam as crianças para brincar nas casas vizinhas, mas também eram usadas para as famosas corridas organizadas em segredo nas muitas ladeiras que ficavam por perto. Isto porque a rua da praia era mais alta que as suas paralelas, o que transformava todas as transversais em ladeiras, algumas bem íngremes e muitas em mal estado, cheias de pedras, buracos e lama. Enfim, o lugar perfeito para despencar de bicicleta, a toda velocidade, com o coração disparado. O trator contratado pelo prefeito para deixar as ruas mais planas passava por lá de vez em quando, mas isso quase nunca funcionava. Depois da primeira chuva, os buracos voltavam a aparecer.

Foi em uma ladeira próxima ao quarteirão da casa das janelas azuis que se deu um encontro explosivo. O encontro da bicicleta com o carrinho vermelho. Naquele dia, o motorista do veículo vinha pela rua de trás bem devagar olhando a paisagem e nem podia imaginar que aquela bicicleta apareceria no cruzamento de repente, como se fosse um foguete sem freio nem direção. Não podia prever o acontecido, mesmo que tivesse uma bola de cristal. Pois bem, mesmo sem previsão, a magrela veio correndo, bateu na porta do carro e arremessou o pequeno garoto como uma catapulta, de tal forma que ele voou por cima do carro e caiu lá do outro lado. 

O motorista quase teve um ataque do coração. Achou que tinha matado a criança e começou a chorar. Até que, por incrível que pareça, o garoto ficou de pé, sacudiu a poeira, deu a volta no carro e veio pegar a bicicleta toda amassada, coitada. A cara do menino não era de dor, mas estava bem feia. Era cara de quem vai levar bronca e ficar de castigo. Pior ainda, cara de quem vai perder a bicicleta, o que seria uma catástrofe para qualquer um naquela vila. O dono do carro confundiu cara de medo com cara de dor e, pensando no pior, tratou logo de pegá-lo no colo para levá-lo para casa. O moleque esperneou, gritou e repetiu mais de mil vezes que já era bem grandinho e que não precisava de colo, mas o moço estava decidido e quando gente grande decide, não há quem os faça mudar de ideia.

Assim, gaguejando sem parar, o moço só pensava em perguntar para que lado devia andar.
_Para a casa das janelas azuis, que fica logo ali na rua da praia, é claro.
Foi nessa hora que ele viu que não estava só. Os vizinhos que ouviram a barulhada saíram de suas casas para servir de testemunha. Todos tinham visto o acidente, mas como cada olho vê diferente, as versões variavam, o que criou uma enorme confusão. Cansado da falação, o moço se pôs a caminhar com o garoto no colo e, seguido pela multidão, chegou no portão da casa tão falada e gritou o que todo mundo sempre grita quando chega nas soleiras das portas das casas da vila.
_ Ó de ca...ca...casa??

Nunca entendi bem esse grito “ó de casa”, já que as casas não podem responder. Mas funcionava. Sempre aparecia alguém e, naquele dia, quem apareceu primeiro foi a dona da casa que, como era de seu costume, foi logo perguntando muitas perguntas seguidas. Tantas perguntas e tão seguidas que seria muito difícil responder uma sem esquecer imediatamente da outra. Assim, sem conseguir responder nenhuma, foi a vez do moço perguntar:
_ Esse guri é da senhora?
_ É um dos meus sim. Está inteiro?
_ Acho que sim, mas a bicicleta está em frangalhos.
_ O senhor atropelou o menino?
_ Eu não. Quem me atropelou foi ele.
_ Como assim? Um menino tão pequeno?
_ Ele veio pela ladeira como um doido, não apertou os freios e nem olhou para os lados. Parecia o Coelho Ricochete.



Não preciso nem contar o que aconteceu em seguida. A dona da casa das janelas azuis chamou o engenheiro magrinho, que saiu correndo da garagem e se juntou à multidão que se encontrava no portão. Certinho como era, a primeira coisa que fez foi espantar a criançada e convidar o dono do carro para entrar e, quem sabe, tomar um cafezinho. Insistiu no convite e acrescentou ao oferecimento um copo d'água e uma fatia de bolo de fubá. A dona da casa, com cara de pasma, num cochicho ao pé do ouvido falou:
_ Vamos dar cafezinho para o homem que atropelou o moleque?
_ Vamos sim, para tentar entender o acontecido.

Café cheiroso e fatia de bolo de fubá são uma combinação milagrosa. Fazem qualquer um ficar bem calminho. Não sei quem inventou, mas essa pessoa devia ganhar o Premio Nobel da Paz. E a prova do que estou falando é que o episódio foi facilmente esclarecido, sem nenhuma alteração, porque mesmo com medo do castigo e de perder a bicicleta, o menino falou a verdade. Depois do acerto de contas e de muitas outras prosas, veio a hora dos apertos de mãos e da feliz despedida. Assim que o motorista foi embora com seu carrinho vermelho, o engenheiro magrinho chamou o menino, sentou com ele na rede azul e, como era do seu costume, explicou: 
_ Quem fala a verdade, não merece castigo. Mais vale a honestidade.

Foi assim que a bicicleta coitada, depois de muito tempo quebrada, encostada, foi consertada e levou o seu dono de volta para a estrada. Agora, o garoto passeava por todo lugar bem devagar. Não corria e as ladeiras mais íngremes também não mais descia. 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

As primeiras lições da Praia da Vila

A praia que ficava em frente à casa das janelas azuis era conhecida como Praia da Vila e tinha as águas esverdeadas, muito limpas e com muitas ondas. Por isso, sempre foi considerada umas das melhores praias para surfar. Meninos e meninas de todas as partes se dirigiam para lá, carregando pranchas coloridas atrás das maiores ondas do pedaço. Mas a Praia da Vila também era a predileta daqueles que ainda não surfavam, especialmente os pequenos moradores das casas que ficavam bem em frente, na rua de trás e nas travessas perpendiculares. Além disso, nos fins de semana de sol ou nas férias grandes de verão sempre era possível ver aquelas esteiras e os guarda-sóis coloridos abrigando turistas que vinham de fora e muitas outras crianças que ficavam nas areias claras e finas e teimavam em fazer castelos para derrubá-los depois.

Com as crianças da casa das janelas azuis não era diferente. Bastava atravessar a rua de terra batida, com muito cuidado para não cair nos buracos, e descer alguns degraus improvisados para chegar a areia sempre muito quente. E quando eu digo quente, estou me referindo àquela quentura que faz a gente correr saltitando e dando gritinhos até a beira da água para esfriar os pés e a alma. Ali, elas se sentiam no paraíso e foi ali também que conheceram algumas criaturas diferentes das que já conheciam até então. Para quem vive na cidade grande, os fins de semana ou as férias de verão são como viagens exploradoras, parecidas com a que os astronautas fazem pelo infinito. É naquele tempo que se passa longe da escola e do curso de inglês que se conhece o mundo e se aprende a lidar com o inusitado.

Uma das primeiras lições que a Praia da Vila ensinou para as crianças da casa das janelas azuis foi a de que os tatuís são animais muito sensíveis. Isso aconteceu logo no primeiro verão. Todos perceberam que quando as ondas lambiam a areia e depois retornavam para a imensidão do mar, milhares de buraquinhos borbulhantes apareciam no chão como mágica. Só que ninguém sabia que aqueles pequenos furinhos na areia eram, na verdade, as portas da casa de alguém muito diferente. A descoberta só se deu quando o engenheiro magrinho enfiou a mão na areia e, causando um grande terremoto, revelou a artimanha dos bichinhos, todos muito brancos e cheios de patas. Depois do espanto que causou a descoberta, a garotada animada se pôs a caçar e colecionar vários pequenos indivíduos de tatuí, enchendo garrafas e latinhas que eram deixadas expostas ao sol. Parecia uma brincadeira inofensiva, só que não. Algumas horas mais tarde, quando se lembraram dos bichinhos e voltaram correndo do banho de mar para buscá-los, a maioria dos pobrezinhos estava morta. Aí, meu amigo, a choradeira foi inevitável. Uma grande comoção, afinal, matar quem quer que fosse não fazia parte dos planos de ninguém.

Para acalmar os ânimos e acabar com a choradeira o engenheiro magrinho pensou bem, juntou todo mundo e, como era do seu costume, deu uma explicação. Os tatuís não podiam ficar longe do mar porque possuem duas antenas na parte dianteira que funcionam como se fosse uma rede de pesca, filtrando os nutrientes da água. Além disso, sua casquinha é tão fina que, ao ficar exposta ao sol, seca rápido e o bichinho morre desidratado. Para sobreviver, aquelas criaturas estranhas precisavam das ondas cristalinas que deixam sua casca sempre molhada, trazem o seu alimento de bandeja e ainda lavam a areia, deixando bem limpinho o lugar onde moram. Se a criançada da casa das janelas azuis quisesse sentir nos pés, ainda durante muito tempo, as cócegas causadas pelos novos amigos, teria de colaborar e deixá-los em paz. Essa lição, bastante doída, foi a primeira aprendida e nunca mais esquecida.


A segunda lição também foi dolorida. Só que dessa vez doeu e sangrou um sangue bem vermelho. Mais acima, onde a areia ferve, também havia buracos redondinhos e profundos, só que maiores. Eram as portas das casas de um outro crustáceo, de olhos pretos e saltados. Um bicho muito feroz. A ele chamavam de maria-farinha, não se sabia bem porque. O que era possível perceber é que o bicho parecia da família dos caranguejos ou dos siris. Um primo de segundo grau talvez. Ariscos e sempre atentos a qualquer movimento estranho, esses ilustres moradores da Praia da Vila, por terem a mesma coloração da areia, conseguiam despistar quem quer que fosse ao seu encalço. Sua capacidade de camuflagem e sua agilidade serviam de proteção e os ajudava a se livrar dos predadores, inclusive de pequenos humanos sem noção. Não preciso nem dizer que foi por ser tão esperto virou uma presa bastante cobiçada por todas as crianças da casa das janelas azuis.

Muitas pessoas confundem a maria-farinha com siris e caranguejos. E quem não os conhece bem, confunde todos eles. Mas o engenheiro magrinho tratou logo de explicar.
_ Primeiro: a maria-farinha é da família dos caranguejos apesar da sua cor e do seu corpo ser mais parecido com o corpo do siri, que é achatado e tem uma cor mais clarinha.
_ Hein? Como assim? Se parece com o siri, como pode ser primo do caranguejo?
_ A principal diferença entre os siris e os caranguejos está nas patas traseiras. Assim como as do caranguejo, as da maria-farinha são pontudas e as do siri são achatadas, como se fossem remos. Por isso, os siris nadam. Já os caranguejos andam na lama e as maria-farinhas também andam, só que na areia. Os caranguejo e as maria-farinhas são corredores natos, tem cinco pares de patas e se movimentam meio esquisito, assim de lado. As duas patas ou "pinças" da frente são usadas para pegar comida, cavar suas tocas e se defender dos inimigos, especialmente das crianças. Outra coisa bem importante: nenhum deles tem medo de gente. Eles fogem, mas quando se sentem ameaçados, revidam.

Como todo mundo sabe, tem lições que só se aprende na prática. Depois de horas tentando, as crianças da casa das janelas azuis, com a ajuda de um par de chinelos velhos, capturaram uma maria-farinha bem grande e, com muito orgulho do que mais parecia um troféu, a colocaram em um balde. Não se passaram dois minutos e um berro ecoou pela praia toda. Os que presenciaram o ataque fulminante da prisioneira perceberam, na mesma hora, porque existe um ditado que diz que tamanho não é documento. A prisioneira pulou e se pendurou logo em um dedinho indicador, bem agarrada, assim como pregador de roupa. E apesar das fortes sacudidas para lá e para cá, a pinça afiada custou a largar o pequeno. Quanto mais o dedinho sangrava, mais o dono do dedo gritava. Quando se desprendeu, o bicho caiu, virou, correu e se escondeu. tão rápido que ninguém viu.

O dedinho foi levado com urgência para a dona da casa, que além de tudo era encarregada da enfermaria. Custou a sarar e o curativo bem feito não deixou ninguém esquecer a segunda lição da praia. Bicho com pinça morde igual a bicho com dente. E todos eles querem a mesma coisa que eu ou você: ser livre para viver a vida como bem entender.


domingo, 3 de janeiro de 2016

A casa das janelas azuis

Naquela longa rua de terra batida que acompanhava a faixa de areia da praia havia muitas e muitas casas, mas nenhuma delas era como a casa das janelas azuis. É claro que todas as casas são parecidas, todas têm portas para que a gente possa entrar e sair, todas guardam um monte de móveis e eletrodomésticos, e a grande maioria abriga uma família feliz. Mas a casa das janelas azuis era diferente, talvez porque tivesse sida construída com muito amor e paciência por aquele casal improvável que tinha se conhecido por acaso e que, alguns meses depois, havia se casado na grande Catedral da Candelária lotada por muitos amigos e pelas duas famílias.

Eu digo improvável porque sempre achei os dois muito diferentes. Ele já tinha mais de trinta anos e era um engenheiro magrinho e muito branco que acreditava que para tudo havia conserto. Falava pouco e tinha um gosto especial por brinquedos feitos à mão. Construir e consertar as coisas eram as tarefas de que ele mais gostava. Ela era alguns anos mais nova e não consertava nada. Gostava de ver todo mundo reunido e também gostava de muita falação. Acreditava que todas as coisas moravam em algum lugar, que a tesoura morava na segunda gaveta da cômoda e que as meias moravam na primeira gaveta do armário grande. Apesar das diferenças, eles estavam sempre juntos, unidos pelo amor que sentiam um pelo outro e pelos dois filhos que vieram logo depois do casamento.

No primeiro encontro entre o casal improvável e a casa das janelas azuis, algo de estranho aconteceu. A casa ainda não era bem uma casa, assim com paredes, telhado e tudo o mais. Apesar disso, já dava para perceber que seria uma bela casa se alguém terminasse o serviço. Não sei se você sabe, mas as casas são como os quebra-cabeças. Elas precisam ser montadas, pecinha por pecinha. E como são muito grandes, são montadas por várias pessoas, cada qual com seu pedaço. Os pedreiros se encarregam de construir as paredes, os marceneiros entalham as portas e janelas, os bombeiros cuidam de criar o caminho que a água vai percorrer para chegar até as torneiras e os eletricistas organizam aquele monte de fios que vão até as tomadas e bocais das lâmpadas para iluminar a escuridão da noite. Isso é claro, quando a companhia de energia elétrica faz seu trabalho direitinho e não falta luz, o que na casa das janelas azuis acontecia quase todos os dias.

Como eu ia dizendo, no primeiro encontro entre o casal improvável e a casa que ainda não era bem uma casa, algo de estranho aconteceu. Os dois tiveram certeza, assim no primeiro minuto, que aquela casa faria todo mundo muito feliz. Uma certeza muito certa que esquentou seus corações. Assim, sem nenhuma dúvida ou medo, o casal se pôs a trabalhar para terminar o serviço por outros abandonado, escolhendo peça por peça e orientando as pessoas para que tudo ficasse exatamente como eles imaginaram. Depois muito trabalho, depois de pronta e inaugurada, a casa das janelas azuis se tornou a estrela da rua da praia. Seus donos ficaram conhecidos por toda a cidade e aos poucos, como em um milagre de Natal, a casa passou a sentir como se fosse gente. Sentia a brisa que vinha lá dos lados da igreja, se engasgava com a poeira vermelha que teimava em entrar por todas as suas frestas e morria de medo das ondas quando o mar se enfurecia e tentava alcançar os portões que, assim como suas janelas e portas, também foram pintados de azul. Sentia também um amor imenso por todos que dormiam ali. Bastava uma noite só para que a casa se apaixonasse.

Com o passar dos anos, a casa acabou assistindo com muita atenção diversas estórias acontecerem. Algumas boas, algumas ruins. Algumas tristes e outras engraçadas. Foram tantas que nem sei por qual delas começar. Mas vou dar um jeito nisso usando um anzol para pescar minhas memórias e contar cada uma delas com muita calma, do jeitinho que me lembrar. Mas preste bem atenção, as lembranças são intrigantes e podem mudar dependendo de quem está a se lembrar. Por isso, se você algum dia já esteve na casa das janelas azuis não se irrite quando as minhas estórias não forem exatamente como as suas. Cada um de nós se recorda das coisas de uma maneira diferente, reunindo razão e emoção. Porque cabeça e coração andam sempre juntos, mas os meus são só meus e os seus são só seus. É isso que nos faz únicos e especiais e foi por isso que a casa das janelas azuis se apaixonou por todos nós.