segunda-feira, 23 de maio de 2016

A casa da usina

A usina de açúcar ficava bem ao norte do estado do Rio de Janeiro e havia sido fundada em 1877 pelo Barão de Barcelos. Era uma das mais antigas usinas de açúcar do Brasil e as más línguas diziam que o imperador D. Pedro II em pessoa havia assistido a sua inauguração. Era lá na usina que o marido da irmã mais velha do engenheiro magrinho trabalhava e era lá também que as crianças da casa das janelas azuis passavam alguns dias das férias, aproveitando os ares do campo e se aventurando em terras diferentes e estranhas.



A casa da irmã e do cunhado do engenheiro magrinho pertencia à usina e ficava quase em frente ao seu grande portão de ferro, do outro lado da rua de terra batida. Como todas as casas da região, era uma casa de fazenda e tinha tudo que uma casa de fazenda precisa ter: um piso de tábuas de madeira que rangem quando alguém passa, grandes e pesadas janelas difíceis de abrir e fechar, móveis antigos e rústicos ligeiramente assustadores, uma chaminé sempre fumaçando e um impressionante fogão a lenha, onde se cozinhavam as melhores delícias do mundo.

No quintal dos fundos, com seu chão de terra batida, as aves passavam o dia piando e ciscando para lá e para cá. O lugar abrigava também os muitos cães que vinham de todas as partes e teimavam em ficar por perto a espera dos restos de comida, disputados e abocanhados pelos mais espertos com uma rapidez incrível. Um pouco mais adiante era possível ver o pomar com suas bananeiras e coqueiros carregados, além de vários outros pés de frutas como caqui, laranja, limão e goiaba, sempre convidativos para quem está com fome, mesmo que seja uma fome pequena. Não sei se você sabe, mas algumas crianças adoram subir nos pés de frutas, para comê-las ali mesmo, sentadas nos galhos mais altos.

Você já deve ter percebido que na casa da usina a vida começava ao amanhecer e não era possível dormir até tarde, o que nos primeiros dias deixava todo mundo maluco. Mas como também não havia nada para fazer quando a noite caía, o remédio era ir para a cama cedo. Desse modo, aos poucos, todos se acostumavam logo com a nova rotina e passavam a acordar com as galinhas. Acordar com as galinhas pode parecer chato, mas não é tão ruim assim. A mistura dos cheiros do café, do bolo de fubá e do pão quentinho é maravilhosa. Como dizia alguém que não me lembro mais, tudo na vida depende de apenas nós mesmos. Se queremos que seja bom, então é bom.

Nesse caso, o melhor de acordar muito cedo era poder pular a janela e subir na charrete do velho leiteiro para ajudá-lo a distribuir as garrafinhas de vidro para cada uma das casas da vila. Deixar as cheias e coletar as vazias, a regra era essa. Quem não deixava uma garrafinha vazia para a troca, também não ganhava a garrafinha cheia com o leite fresquinho recém tirado da vaca. Os moradores da vila, com suas casas antigas e ruas maltratadas, sabiam disso e as garrafas estavam sempre por ali, nas portas ou portões, onde as crianças brincavam com suas bonecas de pano, bolinhas de gude, bicicletas e triciclos ou rolando bolas meio murchas na direção dos chinelos que marcavam as traves dos gols.


Um pouco mais ao longe, a paisagem era marcada pelas plantações de cana com seus talos compridos e balançantes, sempre penteados pelo vento forte. Para chegar até lá, os únicos meios de transporte disponíveis eram as carroças e charretes, que se arrastavam puxadas por bois ou mulas muito teimosas, como todas as mulas que eu conheço. Nos dias de passeio de charrete, as crianças da casa das janelas azuis aproveitavam a companhia de um velho amigo da casa da usina, um pouco mais velho e, por isso, da confiança dos tios. Muito divertido e esperto, aquele amigo sabia tudo que era preciso saber para viver bem em uma fazenda. 

Ao passar pelas plantações, ele fazia a mula parar, sacava o facão e cortava e descascava a cana, deixando que todos se lambuzassem até ter dor de barriga. Caso você ainda não tenha chupado cana, aproveito para avisar: chupar cana é uma arte. Você tem de mastigar as partes molinhas que ficam entre os nós mais duros, sempre com muito cuidado para não machucar os dentes ou as gengivas. Caso contrário, o dentista será seu destino certo. 

Na volta do passeio, a charrete margeava um trecho da linha férrea que também pertencia à usina. A gente ladeava os trilhos que corriam ao longo do rio Paraíba do Sul. Neste percurso, ouvia-se bem o apito agudo das locomotivas e o barulho assustador dos vagões que transitavam carregando lenha e cana nos dois sentidos. É impressionante como alguns odores, sons e sabores podem despertar lembranças antigas. Os dias passados na casa da usina eram realmente deliciosos.





Quero ser grande

Não tem nada mais importante para um adolescente do que ser aceito pelos grupos que vão se formando ao seu redor. Tem o grupo da escola, a turma da rua, a garotada da praia e os times esportivos que jogam vôlei, basquete ou futebol e ainda pegam as ondas mais radicais subindo os corpos morenos naquelas lindas pranchas coloridas. Para serem populares, os meninos podem se tornar feras em algum desses esportes, mas para as meninas serem populares, o bom mesmo é agradar os meninos. Parece injusto porque agradar os meninos é uma tarefa bem difícil, mas era assim que as coisas aconteciam na Praia da Vila e talvez ainda seja.

Lá pelas redondezas da casa das janelas azuis existiam dois grupos dos quais todo mundo queria fazer parte. O primeiro era a turma do dono da bola. Eles eram muitos e gostavam de jogar volei. Todas as manhãs, se reuniam nas areias finas da praia, onde as partidas aconteciam uma após a outra. O dono da bola havia erguido duas traves e delimitado uma quadra com fitas coloridas bem pertinho da casa das janelas azuis. O lugar era ponto de encontro de quase todos os rapazes e moças da cidade e os ambulantes que ficavam por ali se fartavam de vender água e refrigerantes nos dias de calor. Como aconteciam na praia, os jogos eram públicos. Qualquer um podia assistir e a torcida incentivava os melhores jogadores e times com gritos de estímulo e muitas palmas que soavam sempre que o placar mudava.

Os melhores do ranking também jogavam na parte da tarde, só que neste horário o jogo acontecia numa quadra de cimento construída no quintal da casa do fanático dono da bola. Tão fanático que montou também uma arquibancada para a torcida ver os jogos com conforto. Depois do almoço, todo mundo se reunia ali e havia quem pensasse que a casa não era casa, era clube. Nos dias de campeonato, a casa ficava tão cheia que era preciso barrar os menos conhecidos com uma pedido de desculpas e a informação de que a lotação estava esgotada. Era por isso que ser conhecido e fazer parte daquele grupo imenso, mesmo que fosse só para torcer, fazia toda a diferença. Ter carisma, ser bonita ou descolado valia o ingresso, mas exigia algum empenho dos menos atléticos. A sorte é que ser legal também funcionava, graças aos céus.

O outro grupo dos sonhos era o dos surfistas de plantão. Geralmente meninos lindos, com cabelos descoloridos pela parafina, e uma áurea de mistério que atraia as meninas como um imã atrai os metais. Vê-los no mar era ótimo, mas não era suficiente e as garotas passavam uma boa parte do dia bolando planos mirabolantes para esbarrar em um deles e ganhar um sorriso ou um olá. Pois bem, foi um desses planos mirabolantes que incluiu uma mentira absurda que levou as meninas da casa das janelas azuis a andar por quilômetros no sol quente, esfolar os pés e ficar perto de morrer desidratadas. 


O ano era o de 1976 e o evento foi a segunda edição do Festival de Surf na Praia de Itaúna. O Nelson Motta e outros que não me lembro organizaram um festival - Som, Sol e Surf - que reuniria quase 40 mil pessoas e ficaria conhecido como o "Woodstock brasileiro". Isso por que houve apresentações de roqueiros adorados como o Raul Seixas & Bicho da Seda, Made in Brazil, Rita Lee & Tutti Frutti, Flamboyant, além do Ronaldo Rosedá e de muitos outros famosos da época. Acho que ninguém lembrou de como a vila era pequena e a chegada de toda aquela gente, de muitos lugares diferentes, acabou deixando o trânsito caótico. Pior ainda, faltou de tudo, especialmente água.

Pois então. Naqueles dias, as meninas da casa das janelas azuis ainda eram crianças ou quase. As vezes é difícil dizer se quem tem 14 anos já se transformou em gente grande. De qualquer forma, elas achavam que já eram adultas e queriam participar, o que é bem natural. Desejavam com todas as forças estar lá para ver os acontecimentos e, sem pestanejar, bolaram um plano: iriam a pé até a Praia de Itaúna, já que de carro era impossível chegar. Até aí, tudo bem. A segunda parte do plano era um pouquinho mais complicada. Levar junto uma das pequenas, que tinha apenas uns quatro anos. A ideia, bem maluca por sinal, era transformá-la em filha de mãe solteira, o que daria ao grupo de adolescentes um ar muito descolado.

Santa ingenuidade! Quem você acha que iria acreditar nessa balela? Bem, elas tinham certeza de que o plano era muito bom e era isso que importava. Infelizmente, plano bom só é bom enquanto está na fase de planejamento. Na hora do vamos ver, os imprevistos geralmente botam tudo a perder. E a quantidade de imprevistos naquele dia foi enorme: o imenso calor não foi previsto; a enorme distância não foi prevista; a volta não foi prevista; os pés doloridos não foram previstos, o choro da criança não foi previsto, a falta de água e a fome também não foram previstas. Enfim, foi que nem previsão do tempo. Elas acharam que o dia seria ótimo e ele acabou por se tornar um pesadelo.

Adolescente nenhum admite pagar o mico do verão e elas, como boas adolescentes que eram, não admitem até hoje. Durante o festival, tentaram manter o sorriso na cara como se já estivessem acostumadas a passar os dias daquele jeito. Sujas, suadas, doloridas, queimadas, cansadas, com fome e o pior de tudo, sem dinheiro e no meio de uma multidão de pessoas desconhecidas. Se você perguntar, pode ser que algumas dela neguem veementemente sua participação, mas eu juro que aconteceu exatamente assim, como estou contando. Por isso, se você tem 14 anos e está bolando um plano mirabolante, pense bem em todos os detalhes e faça uma previsão do que pode acontecer. Eu já sou velha e como dizem por aí, gato escaldado tem medo de água quente.



Pipas, papagaios e outros bichos voadores

Quase todas as crianças, grandes e pequenas, adoram soltar pipas. O vento batendo no rosto, a correria para todos os lados e a escalada dos muros e das lajes alheias transformam essa brincadeira simples em um dos melhores passatempos para aqueles que querem se sentir livres como os passarinhos. Isso sem falar, é claro, nas guerras travadas para a conquista daquelas que ficam a voar sem rumo, soltas pelo cerol, coisa que o engenheiro magrinho sempre reprovava, mas que a criançada fazia assim mesmo, simplesmente por que era divertido tomar o brinquedo dos outros. Hoje em dia, se apoderar da pipa de alguém pode ser considerado um crime hediondo e acabar em confusão. De todo o modo, naqueles tempos, pegar as pipas perdidas era absolutamente normal, principalmente nas redondezas da casa das janelas azuis. 

Todas as tardes, quando o sol ameaçava ir embora, o céu daquelas bandas ficava coalhado de pipas coloridas e em movimento, assim como se fosse um gif desses que a gente vê na internet. Mesmo quem não brincava podia se encantar com a dança das pipas, se parasse alguns minutos para observar o vôo daqueles objetos que surgiam no céu um a um, como mágica, se misturando às cores do entardecer. Nessas horas era comum ver a gente das cidades grandes na beira da praia, olhando para cima com a boca aberta e a cara de bobo. Acho que a maioria não sabia que aquela linda cena era, na verdade, uma luta feroz, onde o vencedor seria aquele que conseguisse manter a sua pipa no ar por mais tempo.


 
Ter o céu como campo de batalha é uma benção para qualquer um e foi por isso que a gente pequena da casa das janelas azuis quis aprender tudo sobre aerodinâmica. Um aprendizado que demorou alguns anos, por que confeccionar pipas perfeitas que respondam facilmente aos comandos das mãos pode parecer uma tarefa fácil, mas quando a gente se mete a executar, logo percebe que não é tão fácil assim. Por isso, para que a garotada conseguisse fazer as melhores e mais variadas pipas e se aventurasse a empiná-las em público foi preciso que todos tivessem aulas com o engenheiro magrinho, que já não era criança, mas que havia transformado a brincadeira em um dos seus afazeres preferidos.

Quando falo em outros objetos voadores, também estou falando das pipas, só que com outros formatos e outros nomes, como papagaio, raia, peixinho e caixote. A pipa comum é bem simples, mas as outras podem ser tão complexas e difíceis de fazer que até mesmo o engenheiro precisava pedir a ajuda dos livros. Não sei se você sabe, mas os livros, além de bonitos, podem te ensinar quase tudo, assim como a internet. Mas como a internet ainda não existia, por incrível que possa parecer, os livros eram a melhor e mais rica fonte de informação disponível. De todo o modo, antes das pipa ficarem prontas, ainda era preciso enfeitá-las para que todas pudessem ser identificadas mesmo que estivessem bem longe, lá no meio das nuvens.

Por isso, a brincadeira envolvia também a dona da casa, encarregada de levar todo mundo, no seu carrinho minúsculo, até as ruas de paralelepípedos para comprar varetas, linhas, carretéis, cola e papel de seda de várias cores. Esta etapa das compras pode ser muito divertida, porque imaginação de criança não tem limite. Bandeiras, escudos de clubes e pássaros como águias e falcões eram sempre a maior fonte de inspiração. Depois vinham as aulas e várias experiências, algumas bem trágicas que resultavam em rasgões irreparáveis. Os acidentes eram provocados pelo desequilíbrio. Numa pipa, tudo que é colado de um lado, tem de ser colado do outro também, se não a pipa desanda e dá cabeçadas, como quando é abatida. Além disso, caudas ou rabiolas às vezes ficam tão grandes que a pipa tem dificuldade para decolar e pode cair do céu como uma pedra. 

Apesar de todas as dificuldades, as lindas pipas da casa das janelas azuis acabaram por se tornar o objeto do desejo de muitos pilotos inimigos, quase sempre vizinhos e algumas vezes inimigos íntimos, o que quer dizer que você podia ser atacado até mesmo por um irmão ou primo. Tudo começava com a gente tomando distância e desenrolando o carretel, enquanto os ajudantes, geralmente os pirralhos que ainda não conseguiam soltar as suas sozinhos, mantinham a pipa levantada. Quando os ajudantes percebiam que o vento estava no ponto, as pipas eram soltas e os empinadores puxavam e movimentavam a linha de jeito que subissem bem depressa. Não tem sensação melhor do que você no controle de uma delas, se esquivando e atacando como se estivesse em uma batalha aérea. Mas tem sensação pior: quando o inimigo te abate, sua pipa vai embora e você se vê obrigado a começar tudo de novo.

sábado, 21 de maio de 2016

Afogadas

Praias de mar aberto são um perigo e a Praia da Vila não era diferente. O mar mudava de humor que nem gente, hora bem calminho e hora muito bravo, como se estivesse gritando com todos e pedindo para ficar só. Além disso, ainda tinha muitas correntezas, ou seja, corredores estreitos que podem ter mais de 50 metros de comprimento, por onde a água passa com força e velocidade em direção ao mar aberto. Pouca gente sabe mas as correntezas são um dos fenômenos naturais que mata mais pessoas no mundo e se tornaram a preocupação número um dos salva-vidas nas praias, isso quando a praia tem salva-vidas, o que no caso da Praia da Vila era bem raro.

Apesar de quase todos os afogamentos por lá serem relacionados às correntezas, a prefeitura se contentava em avisar aos banhistas do perigo colocando uma bandeirinha vermelha nos lugares sinistros. Isso não impedia os mais corajosos e nem os menos informados de mergulharem e serem agarrados pela água, o que deixava o engenheiro magrinho bem preocupado por que ele sabia que muitos banhistas não conheciam absolutamente nada sobre as correntezas e não faziam ideia do que fazer para sobreviver quando pegos em uma delas. Sempre que ele conseguia identificar uma, só olhando para o mar, ele avisava:
_Cuidado todos vocês. Estão vendo ali, onde a água se move diferente, aquilo é uma correnteza.



As correntezas são assustadoras porque te pegam desprevenido: em um momento você está flutuando feliz da vida perto da rebentação e no outro você está sendo sugado em alta velocidade. E o pior é que, ao contrário das ondas violentas que quebram e te derrubam, provavelmente você não vai notar uma correnteza até que esteja bem no meio dela. Só quem já foi pego por uma pode entender do que estou falando. A irmã mais nova da dona da casa e um prima que veio de longe sabem, porque já aconteceu com elas.

O mar não estava muito agitado naquela manhã. Estava escuro e fundo, mas as ondas não estavam grandes e foi por isso que as duas resolveram nadar. O céu também não estava azul como era de seu costume. Nuvens carregadas podiam ser vistas se aproximando rapidamente como quem vem dar uma má notícia. Mas as garotas eram destemidas e foram mergulhar saltitando pela areia. Um mergulho aqui, outro mergulho ali e quando se deram conta já estavam longe, em alto mar.

Elas até que se esforçaram, nadaram e nadaram até cansar, mas as cabecinhas se afastaram cada vez mais, até que os pequenos pares de braços desistiram de nadar e começaram a se agitar pedindo ajuda. Lá da casa das janelas azuis a gente só conseguia ver dois palitos de fósforo. Já não era possível ouvi-las, mas a dona da casa percebeu logo que a situação era de perigo real e foi por isso que começou a gritar, chamando qualquer um que soubesse nadar. Era de se esperar que alguém aparecesse logo, o que realmente aconteceu. Um ajudante do engenheiro magrinho se apresentou tirando a camisa e largando as sandálias de lado, mas quando viu do que se tratava, amarelou.

Amarelar é a mesma coisa que ficar apavorado, com um medo danado. Nessas horas, quem fica amarelo, também fica imóvel e começa a gaguejar dizendo que não sabe, não pode, não consegue. As crianças que assistiam a tudo foram logo para a areia atrás de alguém, qualquer um ou qualquer uma, mas como eu disse antes a praia estava vazia. Correr pela areia fofa em busca de ajuda, com o coração batendo forte de medo, é terrível. De todo o modo, elas correram, apavoradas, sem encontrar quem pudesse ajudar. Até que resolveram voltar.

A tragédia parecia inevitável, como muitas outras já vistas por aquelas bandas. Mas não aconteceu. A corrente era paralela e as levou para longe, mas não para o fundo. Uma centena de metros depois, um banco de areia se revelou a salvação. Bancos de areia são a última chance que o mar te dá. Dar de cara com um deles é como se você merecesse uma nova oportunidade. Com os dedos dos pés tocando o chão, é mais fácil voltar para a areia, apesar do cansaço que a luta provoca. O susto imenso provou que, mesmo sabendo nadar, devemos repeito à imensidão do mar. Tão lindo e também tão desconhecido. Suas ondas podem te acariciar e te refrescar, mas quando em fúria, tal e qual os seres viventes, podem te levar para sempre, sem vestígios deixar.


Paixão e medo no Morro da Cruz

A capela da Praia da Vila foi construída há muitos anos atrás para a gente que gosta de Nossa Senhora de Nazareth. Depois de pronta, lá no alto do morro, podia ser avistada de qualquer lugar nas redondezas e acabou ganhando o estatus de Igreja Matriz. Isso aconteceu lá pelos idos de 1662. Nos anos seguintes, quiseram até mudar a igreja de lugar e colocá-la em um terreno mais acessível, mas a população da Praia da Vila foi contra e a capela permaneceu onde estava, majestosa e à beira-mar. 

Logo atrás da igreja, em um reduzido espaço que se estende até o penhasco, foi construído também um pequeno cemitério que se projeta sobre o oceano. Cenário de filme de terror, especialmente à noite, quando sopram os ventos fortes e uivantes. Além disso, uma imagem de Nossa Senhora de Lourdes foi encontrada nas areias da praia e os religiosos da região a colocaram em uma pequena gruta formada pelas ondas no sopé do mesmo morro de pedra.



Foi assim que duas santas queridas acabaram morando juntas no chamado Morro da Cruz e se tornaram o xodó da população local. Entretanto, Nossa Senhora de Lourdes ficou em um lugar quase inacessível, só podendo ser alcançada por meio de uma trilha de cerca de 50 centímetros de largura. Um lindo e perigoso cenário onde aconteceu o acontecido que poderia ter resultado em uma grande catástrofe. Arrepio-me só de lembrar.

Deu-se assim: os meninos convidaram as meninas para um passeio romântico. Ver as estrelas deitados lado a lado nas pedras é muito romântico e as meninas são influenciáveis, sempre caem no papo dos meninos. Bem, como era para ver as estrelas teve de ser à noite, é claro, desculpa perfeita para todos andarem de mãos dadas pelo escuro, o que supostamente deveria provocar fortes emoções e uma certa sensação de segurança. Mas, naquela noite, a visão, a audição e a razão femininas só conseguiram se concentrar na espuma que borbulhava furiosa na boca das ondas e no breu que transformava a pequena trilha em um percurso aterrador.



Depois de uma curta e tensa caminhada, os primeiros da fila e portanto os mais corajosos chegaram na área da gruta, mas a sensação de alívio durou poucos segundo porque o grupo logo se deparou com um corpo coberto por jornais ensanguentados e cercado pelos pescadores locais. Todos na penumbra. Notícias de gente morta se espalham rápido e essa, sobre um morto que teria se espatifado nas pedras enquanto pescava, correu de orelha em orelha muito, muito rápido, causando inquietação e desconforto em toda a fila de gente. As sombras projetadas pelas chamas das velas assentadas ao redor da cabeça do pobre coitado tornavam o clima ainda pior e algumas jovens ameaçaram voltar. Só que não deu tempo.

O morto sentou-se e emitiu um som gutural e incompreensível que provocou uma crise generalizada de pânico. Mulheres em pânico? É isso mesmo. Gritos, choro compulsivo, paralisia mental, desmaios e correria. Foi assim, sem por nem dispor. Meninas em desespero, correndo pela trilha estreita e escura. Muito perigoso. A noite romântica mostrou sua face aterrorizante e bem debaixo do cemitério, o que não ajudava em nada. Foi preciso pelo menos uma hora até que os ânimos se acalmassem e os corações voltassem a bater normalmente. Os cérebros demoraram a perceber que o morto não estava nada morto e que tudo não passava de uma brincadeira de mau gosto de meninos malvados.

Aposto que você pensou que o grande susto impediu os apaixonados de se deitarem sobre as estrelas, mas você se enganou. Como diz o ditado, meu ditado por acaso, melhor morrer de amor do que morrer de terror.

Lagoa também tem boca

Não sei se você sabe, mas lagoa também tem boca e como acontece com os humanos e outros bichos é através dela que a lagoa se renova, engolindo a água fresca que vem do mar. A boca da lagoa que ficava perto da casa das janelas azuis só podia ser alcançada pela ponta direita da Praia de Itaúna. É ali, naquele cantinho, que os 17 quilômetros de extensão das águas verdes que se amontoam em forma de ameba se misturam ao azul imenso do mar, tendo como pano de fundo o Morro da Cruz, de onde a Igreja Matriz proteje a gente da vila.




O passeio até a boca era um dos passeios preferidos de toda a gente da casa das janelas azuis. Piscinas naturais se formavam no pequeno canal emoldurado pelas pedras do sopé do morro, onde era possível que os adultos ficassem descansando e observando o movimento de vai e vem das águas. Adulto adora ficar sem fazer nada. Já os pequenos brincavam nas poças que se formavam entre as pedras durante a maré baixa e pulavam no canal de alimentação, fazendo acrobacias e campeonatos de todos os tipos. As horas passavam preguiçosamente naquele lugar mágico e na medida em que o sol mudava de posição, cortando o céu azul, a maré mudava a paisagem como se tentasse acompanhar o caminhar do universo. A cada hora, o lugar parecia diferente da hora anterior, o que animava ainda mais a brincadeira.




As alterações da maré sempre foram um enigma para as crianças, mas na casa das janelas azuis todos já haviam aprendido alguma coisa sobre o assunto com a ajuda do engenheiro magrinho que vivia preocupado com os mais afoitos e com os valentões que não respeitavam muito a natureza.
_ As marés são as alterações do nível das águas do mar causadas pela interferência da força da gravidade da Lua e do Sol sobre a Terra. Quando a maré está alta, chamamos de maré cheia ou preamar; quando está no seu menor nível chamamos de maré baixa ou baixa-mar. Em média, as marés mudam em um período de 12 horas e 24 minutos. Doze horas devido à rotação da Terra e 24 minutos devido à órbita lunar.

É claro que os pequenos não entendiam muito bem as explicações científicas, mas o engenheiro magrinho e a dona da casa acreditavam que bastava que eles soubessem que a maré podia transformar piscinas rasinhas em piscinas cheias e fundas de um minuto para o outro. Além disso, eles também já sabiam que a força das ondas na maré cheia é maior, o que acaba fazendo a lagoa engolir muita água de uma só vez. Observar a goela da lagoa nessas horas fazia a criançada rir porque era como se a ela estivesse tomando um remédio amargo de guti-guti, às pressas, para não sentir o gosto. Parece bobagem, mas conviver e aprender com a natureza pode ser muito útil. Você nunca sabe quando vai precisar e, um dia, aquilo que você aprendeu poderá salvar sua vida.




Foi num fim de uma tarde de verão que um desavisado que brincava do outro lado do canal, mergulhando das pedras no seu ponto mais profundo, não percebeu a mudança que estava por vir. Com a ajuda dos ventos, a maré naquela tarde subiu muito rápido e o guri da casa das janelas azuis se viu irremediavelmente encurralado pelas ondas. Quando se deu conta, elas já estavam bem altas, lambendo a boca da lagoa com força. Era preciso que o menino atravessasse logo o canal de volta para o lado da praia. Se ficasse ali, seria cada vez mais difícil resgatá-lo. 

Mas quem disse que mergulhar na correnteza do canal, durante a cheia, é coisa fácil. Se o mergulho não for no tempo certo, você pode ser levado pelas ondas e, dependendo do movimento das águas, pode parar dentro da lagoa, o que não é de todo ruim. No sentido contrário, você pode parar no mar e, caso isso aconteça, preste muita atenção, porque as ondas altas vão querer te jogar de encontro às pedras e, nesse caso, é melhor nadar pra valer e tentar sair dali o mais depressa possível. 

Foi por isso que, passou uma onda de ida, passou uma onda de volta, e o garoto não mergulhou. Nova onda de ida encobrindo as pedras. Nova onda de volta arrastando tudo para a imensidão do mar, e nada. O garoto não mergulhava pensando no perigo e a situação se complicava. Até que alguém gritou: mergulhe quando eu mandar. Vou contar, é um, é dois, é três. Acredite se quiser, mas esse negócio de contar até três para as crianças é muito eficiente. Acho que estão condicionadas. É só ouvir o três que elas se jogam, seja onde for. E ele se jogou. É claro que foi preciso uma ajudinha extra para chegar do outro lado sem se machucar ou se afogar, mas ainda bem que ele era pequeno e leve, o que facilitou o resgate. Embora o coitado tenha engolido um pouco de água e o medo tenha deixado todos os outros paralisados, acabou tudo bem.

Com o passar dos anos a Lagoa de Saquarema sofreu com o assoreamento do canal de alimentação, o que permitia apenas uma pequena troca de água. Sem renovação, a vida fugiu da região. Foram-se os peixes em busca de outros mares e foi-se a brincadeira nas piscinas naturais que se tornaram sujas. A situação só melhorou com a construção do quebra-mar em Itaúna, que garantiu a entrada de mais água e com isso a manutenção da beleza e da vida do local. Agora eu fico pensando: porque é preciso esperar tanto tempo para cuidar daquilo que a natureza nos deu de mão beijada?



O carnaval e o primeiro amor

As crianças da Praia da Vila adoravam brincar o Carnaval. Era a oportunidade certa para realizar um sonho que quase todas elas tinham: o de se transformar em herói ou heroína para enfrentar grandes obstáculos e vencer o mal. É claro que quando eu falo em herói ou heroína, estou falando dos personagens de livros, revistas em quadrinhos, programas de televisão e filmes, principalmente os dos desenhos animados. O mundo da fantasia é tão grande que cabe qualquer coisa e isso faz a imaginação voar para muito longe, mas só no Carnaval podemos nos sentir como verdadeiros piratas, índios, caubóis, marinheiros, bichos que falam e meninos que voam.

Transformação nos contos de fada é fácil, só que a coisa na Praia da Vila não acontecia como nos contos ou nas fábulas, o que seria muito bom e evitaria a algazarra das semanas anteriores à folia. Lá, como as fadas madrinhas ficavam muito ocupadas, a tarefa de transformar os pequenos nos seus personagens favoritos era toda da dona da casa, que tinha de se virar. Dava uma trabalheira danada, mas ela não reclamava e eu acho que no fundo, bem lá no fundo, ela gostava de ser fada madrinha uma vez por ano. Se animava toda e contava com uma ajudinha extra das amigas costureiras e dos donos das lojas de tecidos que ficavam nas ruas de paralelepípedos. Mas antes ela tentava descobrir qual era o sonho de cada um, para não dar vexame e trocar baiana por banana ou pirata por barata.


No Carnaval daqueles tempos, os vilões a serem enfrentados eram os Bate-Bolas ou Clóvis, nome que vem da palavra clown em inglês e quer dizer palhaço. Talvez os jovens de hoje não conheçam, mas no interior do estado do Rio de Janeiro os Bate-Bolas eram marca registrada da folia. Fantasiados com máscaras e trajes assustadores, eles carregavam bolas presas por corda a uma vara ou cabo e as batiam no chão para fazer barulho e botar medo em quem estava distraído. Daí o nome. O engenheiro magrinho já havia explicado muitas vezes que aquilo era uma tradição na Europa, trazida pra cá pelos portugueses há muitos anos atrás. Mas mesmo sabendo que eram gente como a gente, as crianças da casa das janelas azuis ficavam apavoradas quando avistavam algum desses palhaços nas ruas.




Isso acontecia porque os grupos de Clóvis se enfrentavam de brincadeira, fazendo a maior arruaça. O barulho das bolas quando atingiam o chão parecia barulho de bomba, deixando os pequenos em pânico. Era mais seguro pular que nem doido nos bailinhos e desfilar nos concursos de fantasias do Clube Boa Vista, onde a brincadeira se resumia a jogar confete e atirar a serpentina. Quanto mais longe, melhor. Além disso, as crianças da casa das janelas azuis também podiam participar dos blocos organizados pelos amigos mais velhos. Os blocos formados por uma dúzia de pessoas davam a volta no quarteirão tocando marchinhas compostas nas varandas das casas vizinhas. Foram Carnavais inesquecíveis, não só pela alegria, mas também porque foi nos dias de folia de um ano do final da década de 1970 que meninas e meninos começaram a se olhar com outros olhos. 

Não sei se você sabe mas a descoberta do primeiro amor acontece quando um começa a olhar para o outro de uma forma diferente, até que aquele rosto conhecido, sem mais nem menos, parece novidade. É aí que surge o novo sentimento, maior que a antiga amizade. A estranheza e a angústia que não existiam antes fazem nossos corações bater mais forte e a gente começa a se perguntar muitas perguntas sem resposta. O que é isto que estou sentindo? Por que quero ficar com ela ou com ele e não com meus amigos? Será que ele ou ela sente a mesma coisa? O que devo fazer agora? São perguntas sem resposta que passam a nos atormentar quando a infância começa a nos deixar e uma batalha íntima e pessoal se inicia em nossa alma. Foi difícil, mas também foi muito bem vinda a maldita adolescência!