quarta-feira, 8 de junho de 2016

Tá no sangue

A família da mãe do engenheiro magrinho era uma família de artistas. Não exatamente artistas por profissão, mas artistas por opção ou melhor, por vocação. A começar por seu pai, pernambucano que assistiu a virada do século XIX para o século XX. Gerente da Cia. Telephonica de sua cidade e comerciante de louças, nas horas vagas, o avô do engenheiro adorava pintar. Aprendeu sozinho, amadureceu com a prática e fez tantos quadros que, pouco a pouco, todas as casas da família exibiam pelo menos uma de suas belas paisagens. E olha que a família era grande, porque o vovô pintor foi casado duas vezes e teve inúmeros filhos. Acho incrível que, apesar da qualidade, suas obras nunca tenham sido reconhecidas pelo público, mas acredito que a explicação mais provável é que talvez não fosse esse o seu interesse.


Apesar disso, a semente plantada pelo vovô pintor vingou e cresceu forte, fazendo com que a tendência para as artes plásticas se fizesse presente em todas as gerações seguintes, inclusive na mãe do engenheiro e em sua irmã mais velha. A mãe, além de pintora, também era poetiza e excelente cozinheira. Não sei se você sabe, mas cozinhar bem também é uma arte. Já a irmã mais velha era pintora, pesquisadora e escritora. Tinha adoração por folclore e cultura popular. Passou uma vida inteira pesquisando sobre a formação da população do estado do Rio, sobre suas brincadeiras, seus costumes, suas danças. Acabou reconhecida pelo trabalho pioneiro, do qual hoje restam livros, alguns ainda não editados, entrevistas e artigos em revistas especializadas.



Eu sei que muitos outros tios e primos desse ramo da família seguiram esse mesmo caminho e por isso eu tenho um orgulho danado. Conto apenas sobre as duas porque foi com elas que eu aprendi a gostar de pintar e escrever, o que não quer dizer que aprendi a pintar e escrever de verdade. Ficava observando abobalhada o manejo dos pincéis, tintas, telas, papéis e solventes. Gostava tanto de vê-las trabalhando, que minha mãe resolveu me colocar numa escolinha de artes. Como não podia deixar de ser, minhas primeiras tentativas tiveram como tema a casa das janelas azuis e a Praia da Vila.


Os elogios foram demasiados. Na minha pequenez, acabei acreditando que também tinha herdado o talento da família e me enveredei por um caminho sem volta, cheio de pedras e espinhos. Não é fácil dedicar-se ao estudo das artes, ou melhor, das manifestações humanas, em um país onde a grande maioria da população não é atendida em suas necessidades básicas. A fome e a sede se sobrepõem a tudo. As artes, a preservação da memória ou da cultura e o estudo da formação da nossa sociedade só encontrarão solo fértil em tempos de fartura e de bonança. Nos dias atuais, mais justo seria se nos dedicássemos apenas uns aos outros. Estendendo a mão e acolhendo, dando de comer e beber, ninando, acariciando, protegendo. Só assim poderemos, realmente, fazer a diferença.

Uma praia que se foi

Estou sentindo frio. Por incrível que pareça é a primeira vez em muitos meses que tenho vontade de colocar uma meia para esquentar o pé. Pensando nisso, sobre o clima estar completamente maluco e que as previsões de anos atrás sobre o buraco na camada de ozônio, o aquecimento dos mares e a invasão das águas em cidades litorâneas já estão se cumprindo, lembrei-me da casa de Atafona.

Lá para os lados de São João da Barra, bem ao norte do estado do Rio, quase lá no Espírito Santo, Atafona, ou a praia do Apocalipse como alguns gostam de chamá-la nos dias de hoje, foi o lugar escolhido pelo cunhado do engenheiro magrinho para ter uma casa de veraneio. Assim, quando não estavam na casa da usina, estavam ali em outra paisagem bem diferente. Nada de fazendas, cana, açúcar, trens, plantações e passeios de charrete. Atafona era uma vila de pescadores com um pequeno porto, fundada nos anos cinquenta e fora do roteiro dos turistas. A casa escolhida ficava na Avenida Beira-Mar, bem no caminho de quem seguia para o Farol de São Thomé.



Quando eu digo 'ficava' estou sendo exata. Ficava de não fica mais. Foi embora, destruída, afogada. Uma pena, pois era uma casa de praia deliciosa e como tal tinha os pisos de cerâmica, varanda de frente para o mar, terraço coberto na parte de trás, quintal e um chuveirão onde todos eram obrigados a lavar as areias dos pés algumas vezes por dia. Isso porque todo mundo andava descalça ou de chinelos e vivia com os pés cobertos de areia, terra, lama e sei lá mais o que. Isso, para quem não sabe, suja a casa toda e a dona da casa achava que era melhor a gente limpar os pés do que limpar o chão da casa a cada hora.
 
Assentados ao longo do muro dos fundos, depois do quintal, havia tanques, uns três deles se não me engano, grandes. Era o lugar onde o vovô advogado criava dezenas de caranguejos que de tão lavados e escovados ficavam com as cascas reluzentes, como se fossem cobertos por madrepérola. Escolher um, pegar o bicho, imobilizar as pinças com um palitinho - técnica meio difícil já que os caranguejos só pensam em te bicar - e sair por aí andando com seu mais novo animal de estimação, com coleira de barbante é o melhor que pode acontecer a uma criança. Sabe porque? É impagável ter um bicho de estimação feroz, que caminha de lado, com cara de vilão de filme da Marvel. 


 
Do outro lado do muro dos tanques, era possível perceber que a casa ficava em uma nesga de terra, com a ponta coroada pelo belo farol de filme inglês. Uma nesga de terra entre a imensidão do mar e uma lagoa meio brejo, meio manguezal. A esquerda, os simpáticos vizinhos tinham uma penca de filhos com idades que variavam entre 5 e 15 anos. A mesma variação entre meninos e meninas da família do vovô advogado, o que ajudou em muito na formação de pequenos grupos, ou melhor, de verdadeiras gangues infantis, onde as brincadeiras rolavam soltas. Polícia e ladrão é uma das que me lembro bem. Adoro prender bandidos. 

Uma marca inesquecível daqueles dias entre muitas crianças foi o primeiro contato das netas do vovô advogado com as fotonovelas, consideradas por muitos como leitura de mal gosto. Pode até ser, mas as vizinhas tinham pilhas delas, organizadas por títulos e números. Então, apesar de não se tratar de Shakespeare, as fotonovelas nos proporcionaram tardes e tardes de romance aos borbotões. E cá entre nós, quem não gosta de um romance lacrimejante?

Assim como na casa das janelas azuis, as pescarias com puças, varas na areia ou com rede nas traineiras, também marcaram aqueles tempos em que a gente toda se juntava para descansar e aproveitar a vida. Não era preciso fazer muito esforço para reunir avós, filhos e netos em um lugar como Atafona, com seu visual lindo, bem litorâneo e a cara do estado do Rio. Um vento constante e um mar gigante, que podia ficar furioso ou com muitas correntes de uma hora para outra. Tudo muito lindo, mas também assustador porque foi o medo do humor deste mar que fez com que a praia fosse sendo deixada de lado por seus habitantes, até acabar abandonada.



Para quem ainda não sabe, Atafona está sendo destruída pelas águas que avançam na direção de suas construções num ritmo alucinante de dez metros por ano, há 40 anos.Isso quer dizer que as casas da Avenida Beira Mar já foram engolidas e que, junto com elas, mais de 50 lojas, em cerca de 14 quarteirões. Não há cobrador mais implacável do que a natureza. Hoje, tudo é ruína. Na medida em que a água avança, as areias formam imensas dunas que escondem parte de uma vila inteira e da história de uma gente que se foi. A cidade não foi arrasada por um tsunami como aquele que destruiu parte do Japão, mas não tem como não comparar. A diferença é que em Atafona o mar avança devagar e não deixa ninguém esquecer o seu poder de destruição.

Uma garagem mágica

Uma garagem foi especialmente construída para guardar o carro minúsculo da gente da casa das janelas azuis. Mas embora as garagens geralmente sirvam mesmo para guardar carros, aquela acabou por ter um outro destino. Tudo começou com um presente que a dona da casa resolveu dar ao engenheiro magrinho. Não me lembro bem se foi presente de Natal ou de aniversário, por que algumas lembranças me falham e às vezes fico confusa. O que me lembro bem é que foi um presente e isso deve bastar.

Como todo mundo sabe, o engenheiro magrinho vivia muito ocupado. Quando não estava trabalhando, estava consertando coisas velhas ou quebradas. Uma hora era o ferro de passar roupas que tinha seu fio partido, na outra o chuveiro elétrico que já não esquentava a água, o motor da cisterna que não funcionava, o portão da frente que precisava ser pintado, a correia da bicicleta que havia saído do lugar ou as ferragens das janelas que deviam ... bem, sei lá. Enfim, ele sempre tinha algo para resolver e a dona da casa se mantinha tranquila e confiante, pois sabia que podia contar com a engenhosidade do engenheiro para qualquer emergência. Sua única preocupação era com a quantidade de horas que ele dedicava a essas tarefas e foi por isso que pensou no presente. Achava que o presente o ajudaria e ele arrumaria um tempinho para ficar com a família ou, quem sabe, ir com ela até a praia e dar um bom um mergulho, coisa que nunca acontecia.

Foi por isso que escolheu um presente diferente, tão grande que ocupou toda a garagem e obrigou o carro minúsculo a deixar o seu cantinho e ir dormir ao relento, bem embaixo da amendoeira. Acho que nem todo mundo gostaria de ganhar uma enorme mesa de carpinteiro. Não é um presente comum e pode ser até que alguns considerem que nem é um presente, uma vez que mesas de carpinteiro são verdadeiros trambolhos e só servem para quem gosta de carpintaria. Mas o engenheiro magrinho adorou. Deu pulos de alegria como se tivesse recebido uma benção e tratou logo de dar a ela um tratamento especial. Arrumava e cuidava dela com tanto carinho que a feiosa acabou apaixonada pelo dono e, em retribuição, transformou-se em uma mesa multiuso. Uma amiga indispensável, como os nossos melhores amigos que nunca queremos deixar de ver.



Para desgosto da dona da casa, o feitiço virou contra o feiticeiro: a amizade fez com que o engenheiro magrinho passasse ainda mais tempo na garagem, que deixou definitivamente de ser garagem e se tornou sua oficina e seu lugar preferido. O carro minúsculo, é claro, teve de se acostumar a ficar bem embaixo da amendoeira, meio esquecido porque lá pelas bandas da Praia da Vila a gente gostava mesmo era de andar a pé.

Pode parecer incrível, mas tenho para mim que a mesa de carpinteiro ganhou vida e passou a sonhar os mesmos sonhos do engenheiro. Digo isso por que todas as manhãs, logo depois do café, os dois se reuniam e ficavam a conversar baixinho, discutindo planos mirabolantes. Alguns desses planos eram para resolver os desafios que as bruxas deixavam quando davam uma passadinha pela casa das janelas azuis. Para quem não sabe, quando as bruxas estão soltas, tudo que esta em volta quebra. Pelo menos é o que dizia a dona da casa. Os dois, o engenheiro e sua mesa, levavam os desafios bruxuleantes muito a sério e não sossegavam enquanto não encontrassem a solução para cada um deles. Outros planos, no entanto, tinham por objetivo apenas proporcionar um pouco de diversão e distração.

Pode parecer meio estranho que alguém, para descansar do trabalho, invente mais trabalho. O que posso dizer? Somos todos assim, um pouco neuróticos mesmo. A sorte da gente da casa das janelas azuis é que as neuroses por lá eram todas do bem, não faziam mal a ninguém e muito pelo contrário. No caso do engenheiro magrinho e de sua mesa feiosa, a neurose acabou por se tornar exemplo e o trabalho, qualquer trabalho, acabou por se tornar paixão. Na garagem, os dois criaram peixes coloridos, pássaros cantadores e hamsters fofinhos. Na garagem, os dois fizeram pipas, carrinhos, quebra-cabeças e jogos da memória. Na garagem, os dois montaram varas de pescar, puçás e espinheis de pescador. Na garagem, os dois se divertiram, riram e esfriaram a cabeça. Na garagem, os dois foram felizes. Afinal, aquela era uma garagem mágica: tudo que entrava, quando saia, saia bem melhor.