terça-feira, 5 de junho de 2018

Que diferença?

Foi em um dia de festa na casa da rua Timbuíba que um segredo foi revelado. Você deve saber que existem vários tipos de segredo. Alguns são chamados assim, mas todo mundo sabe, o que significa que não é tão segredo como se pensa. Outros são segredos para alguns, mas não são para outros. Esses são os meios segredos que se parecem mais com os mistérios ou com as mágicas de festa de aniversário. Tem gente que sabe como elas funcionam e tem gente que não sabe. Mas existem segredos realmente secretos: os verdadeiros segredos.

Os verdadeiros segredos são aqueles que trancamos dentro do peito e depois jogamos a chave fora. Ficam lá para sempre e, aos poucos, adormecem até serem esquecidos. Mas nunca morrem. Podem ser fruto de um sentimento ruim, uma culpa por algum mal que a gente causou, um acontecimento que que nos marcou profundamente ou um pensamento que não revelamos para ninguém. Só é segredo mesmo quando é assim: ninguém mais sabe. E como tudo que escondemos é, geralmente, ruim, não guarde segredos de espécie alguma. Conte-os para alguém e você vai se sentir melhor. Sempre.

O segredo da casa da Rua Timbuíba era só meio segredo porque os adultos escondiam das crianças. Havia acontecido há muito tempo e causado muito sofrimento. Talvez tenha sido por isso que virou segredo, para não causar mais sofrimento. Naquela época, era normal esconder as coisas das crianças. Crianças não se preocupavam com nada porque não sabiam de nada. Eram tratadas apenas como crianças e podiam brincar, sonhar e se divertir, sem se preocupar com as conversas dos adultos. Assim, nada de inflação, crise econômica ou serial killers que amedrontam a cidade e isso é muito bom. É uma pena que, à medida em que crescemos, fatalmente acabamos conversando só sobre essas coisas de adulto, o que é muito chato.

BBom, foi num dia de festa como eu ia dizendo. A casa estava cheia e estavam todos se arrumando até que um dos pequenos precisou de ajuda. Provavelmente para amarrar os sapatos ou fechar os botões nas costas do vestido, o que aliás é uma ideia esquisita porque se você estiver sozinho, pode acabar prisioneiro de uma roupa. É vergonhoso ser refém de um vestido e ainda pode causar uma torção de braço. O pequeno procurava alguém para ajudá-lo a sair de uma situação deprimente como essa e, como porta aberta era uma espécie de sinal verde, a criatura entrou no quarto do vô do bigode em busca da Vó.

 

Foi aí que o segredo começou a ser desvendado: o vô do bigode não era igual a todo mundo. Não estou dizendo que ele era um ET ou coisa assim, era apenas diferente. Era uma diferença razoavelmente grande e sua descoberta foi inesperada, o que provocou um surto paralisante no pequeno desavisado, até que o vô do bigode pediu que se aproximasse. Obedecer aos mais velhos era a regra e quando um deles te chamava, você tinha de ir. Às vezes era difícil dar o primeiro passo, mas depois do primeiro vem o segundo e o terceiro e pronto. Você chega lá, mesmo que esteja com medo ou melhor, com os olhos arregalados e o coração disparado.

_ Está vendo a diferença? perguntou o vô do bigode.

_ Que diferença? perguntou o pequeno assustado. 

_ Você tem dois pés e eu só tenho um, disse o vô.

_ Porque cortaram o seu pé? Onde ele está? Quis saber o pequeno quase chorando.

_ Foi um acidente. Ninguém cortou o meu pé. Fui eu que me distrai e cai no trilho do trem.

Nessas horas difíceis acho que é melhor mesmo ser criança e não saber muita coisa da vida. As coisas da vida podem ser muito tristes, tão tristes que nos envelhecem alguns anos em poucos segundos. Em um momento desses quem tem seis anos se sente como se tivesse dez. Como assim, perder um pé no trilho do trem? Isso só acontece nos desenhos animados e mesmo assim, logo depois o pé volta ao normal. Aquilo parecia uma pegadinha, só que não tinha ninguém rindo e isso era mau sinal.

A história era simples: o vô do bigode era engenheiro e construía estradas de ferro para os trens viajarem pelo país, num tempo em que o governo brasileiro ainda tinha bom senso e achava que os trens eram uma boa ideia. Para a construção de uma estrada de ferro perfeita é preciso verificar se toda ela está funcionando direitinho. Chama-se vistoria e funciona assim: os engenheiros sobem em um carrinho que corre sobre os trilhos que já estão prontos. O carrinho é aberto e, portanto, se alguém cair, já era. Se o sujeito tiver sorte, cai para os lados. Se não tiver tanta sorte, cai na frente do carrinho que passa por cima sem dó.

Depois da explicação, a criança viu um outro pé, separado e prontinho para ser usado, com sapato e tudo. Era um pouco mais brilhante que um pé de verdade, mas era um pé, o que queria dizer que mesmo que o acidente tivesse acontecido, alguém já havia pensado em como consertar a coisa toda. Alguém parecido com quem conserta brinquedos ou a máquina de lavar. Vê o que está errado, pensa bem, arranja uma peça nova, bota no lugar e pronto. Graças aos céus existem pessoas assim. Estão sempre querendo melhorar a vida dos outros. No caso do vô do bigode, aquele pé avulso fez toda a diferença para que ele voltasse a ser um vô de bigode quase igual ao que existia antes. Se bem que naquela época ele não era avô de ninguém, ainda.

 

Sabe o que essa história quer dizer: que tudo muda, a vida muda. Só permanece igual o que aprendemos com a garra de alguns, com o amor e a dedicação de outros e com a compaixão com que somos tratados por todos.

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