terça-feira, 5 de junho de 2018

Na rua Timbuíba

Viver longe da família pode ser muito triste e a dona da casa das janelas azuis sabia bem. Ela morava há muitos anos longe dos seus pais, da sua avó materna e dos dois irmãos mais novos. Havia constituído uma nova família ao se casar com o engenheiro magrinho e optar por morar em outra cidade. Sentia-se feliz com a vida que escolhera, mas volta e meia ficava amuada, tristinha, com cara de quem está com saudades. O engenheiro logo notava e fazia exatamente o que precisava fazer: respirava fundo, colocava todo mundo no carro minúsculo e seguir para a rua Timbuíba.

Não era uma viagem fácil porque a rua Timbuíba ficava muito longe e durante o trajeto sempre acontecia alguma confusão. Na maioria das vezes eram os enjôos provocados pelas curvas da Serra das Araras ou então as crises de choro causadas pela fome ou pela sede dos pequenos. Em ambos os casos, o problema era resolvido com paradas emergenciais em postos de gasolina. As brigas para conquistar o direito de deitar no banco de trás e tirar um cochilo também aconteciam com certa frequência, mas esse problema era resolvido sem parada. Bastava uma boa bronca.

Depois de horas na estrada, com a falação, os enjôos e a cantoria que fazia o tempo passar mais depressa, chegar ao destino era um alívio para todos, não só porque o sofrimento dava lugar a alegria de reencontrar a família, como também porque a rua Timbuíba era um oásis no meio de uma cidade enorme e um pouco assustadora. Era uma rua pequena, é verdade. Um recanto agradável formado por uma ou duas quadras, algumas poucas residências e uma praça abandonada, mas verdinha, verdinha. Mas o melhor de tudo era a bela casa da família, tão grande que conseguia acomodar todos os moradores e hóspedes com conforto.
É claro que uma casa grande é uma benção, mas nesse caso a casa também era cheia de gente boa e em cada um de seus cantos era possível passar por momentos deliciosos. Os quartos, que eram arrumados para que os hóspedes pudessem se acomodar, ficavam no andar de cima. O único que não passava por nenhum tipo de transformação era o pequeno quarto da bisa, logo à direita de quem subia a enorme escada em curva, com corrimão de madeira. Não sei se você sabe, mas quando alguém se torna bisa passa a ter alguns privilégios. Além de ser muito importante e de merecer o maior respeito, uma bisa só faz o que quer e tem sua privacidade preservada.

A bisa da rua Timbuíba era baixinha e tinha os cabelos azuis, o que parecia muito estranho já que ninguém nasce com os cabelos dessa cor. Era também muito trabalhadeira e gostava de acordar bem cedinho para começar seus afazeres logo. Ajudava na limpeza, na arrumação e na cozinha. Estava sempre ocupada e só parava para fazer as refeições porque adorava comer. Se me lembro bem, seus olhinhos brilhavam quando se deparava com uma bela coxa de frango, devorada num piscar de olhos.

Para as crianças da casa das janelas azuis ter uma bisavó tinha um significado muito especial. As bisavós era raras e nenhum de seus amigos tinha uma, o que lhes dava um certo orgulho. Além disso, a dona da casa e o engenheiro magrinho queriam aproveitar os dias na rua Timbuíba para descansar e matar as saudades, mas para que isso pudesse acontecer, quem ficava encarregada de cuidar dos pequenos era ela, a bisa.

A bisa foi a minha primeira verdadeira contadora de histórias. Deitávamos juntinhas na sua cama de solteiro e a falação rolava solta, com uma pitada de criatividade e uma colherinha de açúcar. Vozes diferentes para cada um dos personagens, musica, sons tirados dos arranhões na cabeceira de madeira e do farfalhar dos tecidos, uivos e miados. Uma mistura perfeita para deixar os contos e fábulas muito melhores. Deve ter sido ela que plantou em mim a paixão pelos contos e pelo contar.

Em outras casas, em outras ruas, os únicos substitutos à sua altura foram os discos da Coleção Disquinho, produzida apenas até meados dos anos 1980. Os compactos discos de vinil coloridos traziam histórias cheias de músicas e com a narração da fantástica Sônia Barreto. As músicas eram compostas por João de Barro e orquestradas por Radamés Gnattali. Inesquecíveis! 

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